1. Sigo minha série de comentários à entrevista de Karl-Otto Apel a Luiz Felipe Pondé, essa é a quarta postagem, e, dessa vez, vou discutir uma declaração do próprio Apel - na verdade, vou surfar nela.
*Karl Apel* – Sim. Comecei por Heidegger e minha intenção era fazer hermenêutica. Quando vi então os primeiros resultados do trabalho de Gadamer caí em mim! Percebi que não era aquilo que eu queria, embora meu interesse intelectual estivesse ligado ao triângulo Heidegger/Gadamer/Wittgenstein…
2. Eu não tinha consciência disso. Conheci Apel por meio de Transformação da Filosofia, livro que me fascinou porque discutia justamente os teóricos que me interessava desconstruir - e Apel fazia a mesma coisa. Todavia, não sabia que Apel havia começado justamente pela Hermenêutica.
3. Eu cheguei à Hermenêutica por conta da Bíblia. E - atenção! - aqui é necessário fazer uma distinção: na Europa, hoje, Hermenêutica não tem mais nada a ver com interpretação da Bíblia - trata-se da compreensão de modo geral, e mais do que isso, até. O público "crente" brasileiro conhece Hermenêutica mais via Estados Unidos, onde as editoras evangélicas ainda usam Hermenêutica como interpretação da Bíblia - e não fiquem surpresos se os livros de Hermenêutica das editoras evangélicas confirmam... as doutrinas evangélicas...
4. No fundo, eu fui para a Hermenêutica por causa de Croatto. Na verdade, havia uma moda - e ainda há - de se defender "produção de sentido" (a velha alegoria!, o velho midrashe!), e, pior, de denunciar a exegese histórica como ideologia (cf. Hermenêutica Bíblia, do Croatto, de 1984 - que depois ele mesmo abandona, todavia, para fazer Fenomenologia da Religião!). Quando eu li Croatto, considerei que aquilo era uma loucura, do ponto de vista epistemológico - era a defesa da relativização radical da verdade: com o que eu não posso concordar.
5. Aí fui ler Hermenêutica. Abandonei os livros da Vida Nova, da Mundo Cristão, das evangélicas, que trabalham uma Hermenêutica instrumental-funcional, e passei a ler Schleiermacher, Dilthey, Heidegger e Gadamer. Pelo Wittgenstein nunca me interessei. Por Rorty, então, nem se fale. Mas, a rigor, não estamos, a partir do segundo Heidegger, muito longe disso.
6. Schleiermacher, Dilthey e o primeiro Heidegger ainda me são recomendáveis. O segundo Heidegger e Gadamer, com eles tenho graves problemas - meu amigo Zabatiero dirá que isso se resume a "inferências desmesuradas", mas, seja como for, para mim, ambos destroem a possibilidade de um pensamento crítico - ele se torna vicioso, circular, tradicional, não-fundacional, no fundo, ainda que não seja esse (será?) seu interesse, acrítico, e o que é mais grave, um conhecimento "histórico" transformado em situação ahistórica, posto que reduzida a sua inserção na tradição.
7. Sempre me bati contra isso. Tive longas conversas - nem tão longas assim, é verdade - com Haroldo Reimer sobre isso. Foi um parceiro de diálogo. Houve poucos outros. Até que me bateu o livro de Apel, os dois volumes, na mão. Devorei. O pensamento de Apel em Transformação da Filosofia, guardados os limites epistemológicos do programa de Apel - insuficientes, a meu ver -, equivale ao meu: reconhecemos as questões nevrálgicas de Gadamer, de Wittgenstein, de Rorty, mas não podemos capitular diante de sua "saída".
8. Apel disse: "Quando vi então os primeiros resultados do trabalho de Gadamer caí em mim!" - pois eu já caí em mim quando vi biblistas usando Gadamer para defender politicamente a ideologia (naqueles anos, combater a direita) - e fiz as "desmesuradas inferências" que me são características: agora, só a espada resolve a questão da verdade! - daí, a necessidade de dissolvê-la, de fingir que a questão da verdade não está posta, para, assim, ver se se consegue paz. Freud! Recalque do real, princípio de prazer! Não, senhores - a paz não será alcançada pela dissimulação da questão da verdade. E, por outro lado, ela não é democrática!
9. Eu diria que, no meu caso, a Hermenêutica não foi o ponto final. Parece que foi, para Apel - se não estou desatualizado sobre suas pesquisas atuais. A Hermenêutica não tem como resolver o problema: nem ela, nem a Filosofia, nem a Sociologia. Nem Apel nem Habermas têm como resolver o problema, porque o problema não é político!, e eles insistem em resolver politicamente a questão, tornando-a "racionalidade pública", questão de "argumento público". A rigor, ainda estão na esteira de Weber e sua proposta de leitura "sociológica da ação humana" - ação racional com vistas a objetivo, com vistas a valor, com vistas a paixão e ações tradicionais. Cada disciplina quer ver o mundo com seus olhos - e seus olhos estão inexoravelmente disciplinariamente limitados!
10. A solução para o problema que a Hermenêutica denuncia e põe está no retorno às bases cognitivas, biológicas, humanas, coisa que Piaget já fazia, Vygotzky, coisa das Ciências Cognitivas, das neurociências. Não há resposta na Hermenêutica, porque ela é um espectro atópico flutuando no nada - é preciso situá-la antropológicamente (pragmática: política, estética e heurística) e biologicamente. Sem isso, é platonismo fantasmático, política que vai se frustrar, podem estar certos. Como Foucault, louvando a revolução islâmica - "a revolução islâmica ensinará o Ocidente a conciliar religião e racionalidade"! Puf! Deu no que deu...
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
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