1. Sexta e sábado, estou por conta de aulas na Pós-graduação em Ciências das Religiões, onde vou lecionar "Religiões Monoteístas". Fui um tanto quanto intempestivamente avisado do compromisso, o que me exigiu uma troca de e-mails com meu coordenador. Resolvidas as pendências todas, faltava uma - no sábado, qual é o horário do almoço? E eis a resposta, literal, num e-mail que nada mais continha: "Oficialmente, de 12 às 13".
2. "Oficialmente, de 12 às 13". O que isso significa? Depende. Do quê? Do que eu esteja fazendo, ao ler a expressão. Se eu simplesmente me atenho à expressividade plástica do que está escrito, posso, por exemplo, interpretar que o horário de almoço é, dado que oficial, de 12 às 13. Não é, ora bolas!, o que está escrito? É?
3. Um passo atrás. O que é isso que estou lendo? Um e-mail. De quem? De meu coordenador. Para quê? Para orientar-me quanto a uma questão: a que horas eu, como professor, cumpro o horário de almoço, no sábado. E, por que perguntei isso, ele, meu coordenador, me responde: "oficialmente, de 12 às 13".
4. Não posso ler a declaração sem trazer meu coordenador para junto dela. Lamento, Umberto Eco, mas o texto não pode falar, sozinho, o que meu coordenador está a me dizer, e tanto, que espera que eu o compreenda. Aliás, o texto, só, me faria trair a intenção de meu coordenador - se não a interpreto erradamente...
5. Ampliemos o quadro. Sabemos que horários de almoço são coisas necessárias. Mas o horário não é lá tão fixo assim. Podemos almoças às 11, às 12, às 13, às 14. Tanto faz. Na prática, pode-se resolver isso lá, durante a manhã, num acordo entre as partes - é a praxe, até. Isso quer dizer que os programas colocam um horário no papel, porque precisam colocar - mas, na prática, decide-se concretamente o horário, por meio de um acordo. Nesse sentido, não está escrito "oficialmente, de 12 às 13". O que está escrito é: "Osvaldo, no programa consta de 12 às 13, isto é, está, como oficial - entre aspas -, mas, na prática, você sabe: fique à vontade".
6. Um indício textual, que, todavia, sozinho, não supera a necessidade da reconstituição da presença anafórica (fora do texto) do autor, de presentificá-lo, é o advérbio oficialmente. Se meu coordenador quisesse me dizer que eu tinha que parar às 12 e voltar às 13, ele não usaria o oficialmente - ele diria: "de 12 às 13". Mas não está dando uma ordem - está me remetendo a uma prática consagrada nos cursos, nas reuniões menos formais: é lá e então que a turma decide: Osvaldo, sabe como é, no papel (oficialmente), consta de 12 às 13, mas você decide lá com os meninos...
7. Se eu "mato" - deixo morto - o meu coordenador, o autor da frase - perco o referencial intencional da comunicação, do discurso: e invento um sentido polissemicamente sustentável, e digo que tal coisa está no texto. E, todavia, meu coordenador quis dizer mais. E mesmo se eu remeto a interpretação à "rede discursiva" em torno de mim, leitor/destinatário e dele, autor/remetente, com base em que, se não no fato de que essa interdiscursividade foi acessada intencionalmente pelo autor, eu devo interpretar? Se o autor não tivesse usado criativamente tal rede discursiva - e usou - usá-la seria trai-lo, sem sursis.
8. "Oficialmente, de 12 às 13" quer, na verdade dizer, primeiro, que "eu" (com a turma) decido se paro às 12, às 13 ou a hora que decidirmos. Além disso, diz mais - sem dizer, mas dizendo: que podemos parar até mais de uma hora, se decidirmos, porque, o que está decidido, está decidido oficialmente - isto é, para constar.
9. Agora me digam, meus amigos - como postulamos, programaticamente, que o texto fala? Não, não fala - falamos por meio dele, nós os autores, ou fazemos o textos falar para nós, nós, os leitores. Ele, mesmo, é apenas massa de modelar. Além disso - em que situação difícil se encontra o leitor que não estiver em sintonia cultural, psicológica, espiritual, situacional, contextual, com o escritor? Todavia, o escritor usa essa rede, de que dispõe e da qual está ciente, para comunicar-se, para potencializar a comunicação - inclusive, com arte... como fez meu coordenador...
10. Sou exegeta. Sei que nenhum - absolutamente nenhum - texto da Bíblia Hebraica foi escrito para mim. Todavia, minha vocação e carreira é escutar a sintonia programática, pretendida, entre quem escreveu o texto - os textos - e seus respectivos leitores, lá, eles, históricos, eu, um penetra sherlock-holmesiano. Para mim, se eu não recupero essa rede fina, essa peculiaridade histórico-situada, esse túnel psicológico-sociológico, esse momento, esse instante, esse evento, essa ligação cármica - "autor histórico/destinatários históricos" - não posso seque imaginar a possibilidade de entender o texto. Posso usá-lo - posso abusar dele, até, posso servir-me dele, posso ilustrar sua polissemia (e minha criatividade!), mas serei eu, só, a brincar com letras e frases, a propor castelos de cartas, a fazer bonecos de massa. O que é lícito - se assim anunciado.
11. Se, todavia, meu jogo não é entre eu e eu mesmo, mas é entre mim e aquela alma histórica, morta, que, um dia, exprimiu-se em direção a outras almas agora tão mortas quanto ela mesma, mas, lá e então, vivas, ambas, resta-me apenas uma e uma única alternativa: Lázaro, sai para fora... Isso - e só isso - é exegese e história. Conquanto não seja a única coisa a se fazer com textos - e, eventualmente, nem a melhor. Mas é o que é: exumação de mortos - mas de gente morta... E se não se sente aí o cheiro dos mortos, nem se chegou a ler a alma dos vivos!
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
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