domingo, 6 de março de 2011

(2011/133) O uso do cachimbo deixa a boca torta - paradigmas subterrâneos na percepção do mundo


1. É preciso ter paciência (coisa que eu tenho em pouca quantidade). Não vai ser do dia para a noite que se conseguirá sair de um padrão de percepção do mundo, do homem, de si, enfim, da "verdade" das coisas e da totalidade delas, conquanto se possa fazê-lo em um relativamente curto espaço de tempo. Todavia, o padrão epistemológico de separação programática da mente e do corpo, da matéria e do espírito, do orgânico e do inorgânico pervade a consciência humana há milênios. Não é uma lança que a atravessa e sai do outro lado - atravessou-a, e lá se encontra, cravada, no coração do homem.

2. Primeiro, por causa da religião. Há alguma coisa entre cem e trinta mil anos, a religião invadiu a mente humana, e de tal sorte, que o imaginário divino passou a fazer parte substancial da realidade. Para além da realidade sensível, uma realidade imaginária e criativa foi tomada como real e eficiente, de modo que a educação, a política, a economia, o trabalho, a cultura, a arte - tudo foi invadido pelo divino. Os deuses dançam nas carnes humanas.

3. Ora, é na imagem criativa do divino que está a força, o poder, a realidade última, de sorte que, invadida pelo divino, a realidade humana, este mundo, foi interpretado como imperfeito, fraco, desprezível, falso, ilusório. Ah, se o homem pudesse trazer para cá aquela força... E por que não?

4. O próximo passo foi racionalizar - a isso se chamou de "filosofia" grega - o mito do divino, e o resultado é comum tanto às categorias gnósticas de religião - a cristã, por exemplo - e ao platonismo grego. No caso cristão, gnose e platonismo uniram-se num poderosíssimo sistema de abstração da verdade, de idealização da verdade. Uma vez que o mundo humano, esse mundo, essa terra do homem, é desprezível, fraca (mas como assim, não é criação divina? Hum? Ah, sim, mas o pecado a estragou... [eis a síntese gnóstico-platônica entre judaísmo e helenismo, a fé cristã]), resulta que, posto que divina - e como não o seria? - a verdade só pode ser de outro mundo - de qualquer modo, não desse, não daqui, não conforme: tem de ser não-humana, e não-humana, aí, entenda-se: descarnada, sem corpo, que não passe entre pela boca e saia pelo ânus...

5. Não foi suficiente toda a crítica aristotélica dos séculos X em diante - se bem que aí reside o princípio da inflexão, que, todavia, tardará quase outros mil anos a materializar-se. Quando a ciência empírica eclodiu, na Inglaterra cristã, era cristã a sua concepção, logo, a verdade, ainda que buscada por força da natureza, era não-natural, atemporal, divina. Tratava-se de saber quem falava, agora, em nome da Verdade divina - se o Papa, se Newton. Se, de um lado, Platão e Aristóteles são pedagógico-politicamente antípodas, a epistemologia de ambos concebe a verdade como estando lá fora... fora de onde? - do homem carnal, do homem vivo.

6. Mesmo o Romantismo, do século XIX, tão lúcido a respeito da contingência histórica da verdade, todavia não teve lucidez o suficiente para perceber que verdades humanas não-naturais, não-materiais, não-vivas, mas abstrações teoréticas, especulações não-situadas, constituíam apenas resíduos não-mitológicos do sistema mitológico anterior - a linguagem mudara, mas a mente continuava operando do mesmo modo, consciente de que consistia num sistema não-material, não-vivo, um outro sistema - se não divino, certamente não-natural.

7. Por que as especulações filosóficas e hermenêuticas do século XX foram esconder-se, proteger-se, aninhar-se, de um lado, na Linguagem (a Linguagem de um segundo Heidegger não é quase uma Deusa? - certamente um Espírito hegeliano...) e, de outro, na Tradição? Não são a Linguagem e a Tradição os dois espectros mais imateriais a que se pode recorrer, no caso antropológico, para fugir da matéria? Encavernados na Linguagem, não estão os homens como que no "céu"? Escastelados na Tradição, não estão com o que no Templo de Yahweh?

8. Todavia, há cerca de duzentos anos, iniciou-se uma transformação radical na plataforma epistemológica - e ela começou pelo Ocidente. O padrão cem vezes milenar de tratar a mente como alguma coisa não-corporal começou a ruir - e, com ele, todas as suas conseqüências "filosóficas". A verdade não consiste num sistema consensual de rotinas discursivas, não-fundamentais, não-situadas, não-materiais: a verdade é um desdobramento orgânico da capacidade viva de instalação no ecossistema - e da vida depende essa capacidade: vida é conhecimento. Platão sofrera o sofrimento dos religiosos desgostosos da vida - fugira. E levara atrás de si um planeta inteiro... Quer dizer, o próprio Platão já corria atrás de um longevo movimento de égira do mundo... provavelmente de origem mais oriental (indiana?).

9. Não é fácil fazer com que se perceba a novidade - as mentes estão tão acostumadas ao conceito não-material, não-biológico, espiritual, incorpóreo, de verdade, que não conseguem - não, sem muito esforço - compreender que não se pode atravessar esse rio simplesmente trocando o conteúdo dos discursos, substituindo uma verdade eclesiástica por uma verdade filosófica, sendo, ambas, partes da mesma concepção perceptiva do sistema platônico, uma racionalização mitológica, de um lado, e uma racionalização filosófica de outro. É preciso considerar que a mente emerge do organismo, e que seu funcionamento desdobra-se a partir da mesma faculdade inexorável da vida de instalar-se eficientemente no mundo. Chega de olhar para cima - e de nada adianta olhar (apenas!) para dentro: temos de olhar ao redor...

10. Os espíritos, todavia, lutarão freneticamente pela sua sobrevivência. Orixás poderosíssimos, lutarão bravamente pela manutenção de seus cavalos. Os deuses enconderam-se na mentalidade pseudo-moderna, nas abstrações linguísticas, nos estruturalismos, nas argumentações traditivas, de qualquer modo, onde quer que haja ectoplasma retórico e espaço para lá esconder-se o homem e sua carne-de-vermes-comer, e, silenciosamente, operam o regime de retorno aos velhos e bons dias - fazendo que andam para a frente, promovem um retorno ao Antigo: eis o "pobre pós-modernismo" (Morin e Kern, Terra-Pátria). Nos seus cavalos em transe, os deuses comemoram a ressacralização do mundo - e, todavia, ele nunca foi dessacralizado - nem na Filosofia... Ontem ainda ouvi que a vida do outro tem valor porque brilha nele a face de Deus...


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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