domingo, 30 de janeiro de 2011

(2011/051) Não gostei - mesmo sendo Nicolelis


1. 15 dias no twitter, e Nicolelis já foi convidado a falar sobre "redes sociais". O inusitado da situação é tão óbvio, que a saída foi iniciar a palestra chamando atenção justamente para esse fato, ironizando-o, e, por meio da estratégia de tratar da questão com "humor", esvaziá-la. É sempre uma boa estratégia, mas, de qualquer forma, reveladora...

2. A princícpio, gosto de Nicolelis - mas, rapidamente, corrijo minha declaração: gosto de neurociências, e, como Nicolelis parece ser o mais importante neurocientista brasileiro, devo gostar dele, tenho de gostar dele. Logo, gosto. É verdade que achei a sua palestra aos alunos da UnB muito fraca - beirando ao raso mesmo. Mas relevei. No entanto, suas declarações - algumas delas, vai... - na conferência de Natal me soaram muito estranhas...

3. O link da notícia, bem como trechos de seu discurso está aqui. Eis uma das declarações que me pareceram carregadas do excesso do momento: "pare pra pensar: nós vivemos num mundo em que qualquer um pode ser eu, qualquer um pode assumir qualquer personalidade". Ora, o fato de que qualquer um eventualmente pode fingir ser eu não caracteriza nosso mundo - ainda é e continuará sendo uma fraude, desde que tal procedimento não se dê no contexto de jogos conscientemente encenados. Na vida real, o fato de a tecnologia permitir que um número grande de pessoas seja enganada não diz nada sobre o "mundo", ao menos nada que já não se tenha dito há muito tempo - para os canalhas de plantão, toda oportunidade de enganar incautos será muito apreciada, e nosso mundo facilita muito a vida dos canalhas... Se Nicolelis comentasse esse particular aspecto das redes, chamando atenção para o fato de que facultam "crimes", vá lá - mas não, trata do tema como se tratasse de algo oportunamente promissor...

4. Mais adiante, uma exemplo de como axiomas, provérbios, máximas, tomados e tomadas como filtros unilaterais da realidade levam, invariavelmente, a constrangedores equívocos. Nicolelis declara, categoricamente, que não há "imparcialidade" - o que justificaria a encenação de "eus" por quaisquer "eus". Para "provar" sua tese axiomática de que não há imparcialidade, ele recorre ao processo eleitoral de 2010, e, segundo o articulista, teria dito que, "a imprensa tradicional, mesmo se dizendo “imparcial”, se alinhou à candidatura do candidato do PSDB/DEM, o ex-governador de São Paulo José Serra".

5. A mídia de direita, dizendo-se imparcial, foi parcialíssima - eu sei. Mas eis o que Nicolelis teria afirmado, na seqüência: "o que aconteceu no Brasil na eleição passada foi a demonstração da falácia de certos meios de imprensa e do partidarismo que invadiu essa opinião dita imparcial. Mas o desmentido só ocorreu nesse lugar capilarizado chamado blogosfera. A guerra da informação foi travada aí. A eleição foi ganha na trincheira da blogosfera, porque os desmentidos eram instantâneos". Ué?! Então quer dizer que na blogosfera há "imparcialidade"? A trincheira ocupada pela blogosfera foi "parcial" na sua "imparcialidade"? De outro modo, como teria desmentido a mídia? E desmentido em que, se a regra é que não há imparcialidade?

6. Mais adiante, sobre a cidadania representativa, Nicolelis afirma que "a democracia representativa é muito interessante, mas ela faliu, porque o grande objetivo dos representantes dos indivíduos do planeta é representar a si mesmo". Ora, ora, ora - mas se não há imparcialidade, não há como os representantes não representarem senão a si mesmos, porque são, necessariamente parciais - não? Percebem? O axioma não se encaixa - e o correto deveria ter sido denunciar a imparcialidade da mídia, e ter a coragem de afirmar que há, sim, parcialidade possível. Todavia, uma vez que tudo e todos são postos sob o tapete da parcialidade, até a própria palestra de Nicolelis revela-se suspeita - defende que intereses, professor, já que, não havendo parcialidade, também o senhor é parcial?

7. Das duas uma: ou o professor Nicolelis deixou-se levar pela fluidez discursiva do veículo-tema da palestra, ou o repórter que assinou a reportagem misturou alhos com bugalhos. Por exemplo, observe-se a declaração seguinte, atribuída ao professor Nicolelis: "o neurocientista destacou que as redes sociais 'conseguiram fazer as identidades, às quais a gente se apegou tanto, desaparecerem. Você pode assumir o que você sempre quis ser, mas não podia por medo do preconceito. Nós ainda não conseguimos lidar com o fato que as pessoas são de diferentes matizes. As redes têm essa vantagem de permitir que as pessoas possam assumir [suas ideias] livremente'".

8. Como assim - o "eu" subjetivo do sujeito pode ser acintosamente descartado e substituído por um outro qualquer - bem entendido, sem que isso seja uma disfunção psiquiátrica!? O sujeito pode assumir ser quem sempre quis ser - onde? Quando o PC é desligado, essa paranóia permanece? O professor está afirmando que a identidade "fake" que se assume nas redes sociais substitui realmente, de fato, a identidade do sujeito - mesmo depois de desligada a rede? Dizer que as redes têm o poder de permitir que as pessoas assumam suas idéias livremente não é a mesma coisa que dizer que as redes permitem que eu me torne outra pessoa. Quando se faz isso, quando um usuário das redes - coisa que (ainda) não sou - assume uma identidade "falsa", nem de longe isso significa que ele se tornou outra pessoa, que sua identidade desapareceu... Deus do céu - o mundo das redes é virtual! E até o Papa sabe que perfil fake é perfil fake...

9. Quando João, maior de idade, 45 anos, entra num chat e se faz passar por menor, 12 anos, ou qualquer outra coisa, para capturar incautos em uma rede de pedofilia; quando José, mau caráter crônico, aproveitador de mulheres carentes, entra na rede e posa de galã, e tira até a pele de quarentonas solitárias; quando Maria entra na rede e finge ser quem não é, simplesmente para experimentar uma espécie de atavismo - isso nada tem a ver nem com perda de identidade, nem com aquisição de nova identidade - trata-se de manobras muito conscientemente levadas a termo por pessoas mau intencionadas e criminosas, servindo-se da tecnologia.

10. E quando pessoas boas, normais, por pura diversão, brincam de ser o que não são na rede, e, na manhã seguinte, despertam, banham-se, alimentam-se do pão de todos os dias, e entram nos ônibus, rumo ao trabalho, vai aí aquela pessoa que nasceu de um útero preciso, cresceu, construiu sua identidade por força de experiências vitais. A noite acabou, os jogos terminaram, e eis mais uma pessoa viva e concreta jogada na ciranda de viver e manter a vida - tal qual ela é.

11. Não, as redes sociais não substituirão - jamais - as identidades (é meu risco de dizer). Nem quando é um neurocientista a dizê-lo.


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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