domingo, 23 de janeiro de 2011

(2011/036) Do sentido que a vida impõe - de significados e direções


1. É provavelmente verdadeira a afirmação de que os seres humanos somos os únicos seres vivos que precisam trabalhar a noção de sentido. Os demais nasceriam com comandos pulsionais naturalmente funcionais - nascem e morrem do mesmo modo, repetindo, "inconscientemente", a história de seus ancestrais. Nós, não - temos de inventar nossa vida.

2. Inventar a vida é dar sentido a ela. A vida deixou de ser comer, beber e dormir. Essas atividades biológicas constituem muito mais o sustentáculo da vida, mas a vida é o que acontece sobre elas. Sem o risco de reduzi-las a epifenômenos, porque a vida é o corpo, também, e o corpo é o conjunto dessas funções, podemos considerar que a vida se nos apresenta mais forte aqui, nas regiões do espírito, sem que, não nos esqueçamos, o corpo esteja, aí, presente em carne e sangue - integralmente.

3. Mas a vida é, então, o sentido que damos à existência. Há que haver, para nós, é nossa exigência, um enredo, e um bom enredo, para que a vida "faça sentido". Quando faltam os enredos, quando nossas substâncias químicas, nossas operações elétricas, nossos neurotransmissores, perdem a capacidade de tecer a teia dos sentidos para nós, é como se morrêssemos, deprimidos, e a depressão é, a meu ver, justamente a perda catastrófica dos sentidos possíveis, a desumanização radical.

4. Com sentido, no entanto, falamos de duas coisas - falamos de significado, e falamos de direção. A direção depende do significado, mas o significado depende, também da direção. Para aonde vamos é uma questão de que sentido damos à vida, que significado aplicamos a ela. Todavia, é também comum que a direção que decidimos tomar plasme a seu modo próprio o significado que, então, emprestamos ao nosso dia a dia.

5. A religião é uma força que plasma sentido para nós. Um shopping de sentido. Vamos lá e compramos um. O pacote inclui significado e direção - seja uma seta do tempo, seja um ciclo do tempo. A religião que compramos a preço certo dirá, para nós, e abraçaremos isso com toda a nossa força e entrega, o significado da vida, bem como a direção - a que lugares desconhecidos/conhecidos a morte nos levará... Já não somos "nós" - a vida já não nos pertence...

6. Mas, então, você "estuda" a religião, e acaba por descobrir que ela, afinal, é a institucionalização de um significado e uma direção que alguém, um semelhante seu, inventou para si, e que, tomado da pulsão dos deuses, considerou ser esse o significado e essa a direção para todos os homens e mulheres do planeta - a megalomania do amor, vá lá, ao lado da pretensão egocêntrica da verdade metafísica total... Quando isso ocorre, quero dizer, quando você descobre que as religiões são, afinal, jogos de cultura, elas perdem o poder de hipnotizarem ("ungirem") nossa consciência com o óleo da verdade.

7. É natural que assim seja, mas, nem por isso, é agradável - ao menos num primeiro momento, a crítica do sentido das religiões empobrece a vida, extraindo-lhes as certezas metafísicas. Eram falsas, é verdade, estávamos enganados, mas nossa alma sofre. Talvez a única forma de superar esse sofrimento seja o enfrentamento, igualmente doloroso, da situação: não sofríamos, antes, porque estávamos presos numa rede de sentidos inventados, mas, porque a ela nos entregamos acriticamente, forte o suficiente para nos fazer crer que a segurança equivalia à certeza, era seu resultado e produto. Mas não era assim: a certeza e nada é a mesma coisa: é psicológico o fenômeno - porque me julgava seguro, sentia-me seguro... Mas, a rigor, nunca houve segurança... ou insegurança. Houve, sim, a vida, essa hiper-estrutura demandante de um enredo...

8. Que eu posso criar... ser meu (próprio) Buda ou meu (próprio) Paulo...

9. O problema que enfrentamos decorre da virada subjetiva da religião. Enquanto ela existiu como fenômeno gregário - "crentes" são "ovelhas" - era fácil vivê-la, porque você sequer precisava pensar sobre ela. Mas inventou-se a subjetividade, a "experiência", o que exigiu uma sintonia fina entre o sentido que a religião propõe e sua percepção interior. Mas isso é impossível. A crítica destruirá a sintonia em dois segundos, e o grande jarro de prata revelar-se-á de barro, e se quebrará ao primeiro toque...

10. Não é culpa nossa. Não é culpa minha. A subjetividade impõe a reformulação radical da religião - e a reformulação começa pela aceitação do fato bruto de que a religião é cultura, invenção humana, que, psicologicamente, funciona como uma capa de sentido - de significado e de direção - para a vida, esta, a real demandante do processo. Não é a religião a questão fundamental - é a vida. A religião, aí, aparece como um instrumento histórico a serviço de pulsões vitais muito mais primitivas e "reais" do que a religião em si.

11. Numa palavra: não é a religião que deve merecer nossa preocupação fundamental - é a sua função de fornecedora de sentido. É, pois, de "sentido" que se trata. E, meus caros amigos, qualquer coisa que nos dê sentido tem a mesma funcionalidade que tem - e tem! - a religião. Porque aquilo a que devemos nos ater é, para todos os fins, a vida, essa sim, os limites de nossa experiência humana.




OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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