2. Meu amigo Cleinton foi categórico: "você está equivocado, Osvaldo".
3. Para um histórico da questão, o leitor deveria, primeiro, ler meu primeiro post (aqui: (2012/154) Bíblia e oração?) e, depois, meu segundo post (aqui: (2012/157) Quando é bom que os culpados sejam os vizinhos (hipérboles, exageros e retórica à parte, acho que é isso)). É como um comentário a este último que Cleinton sacramenta seu veredicto, que, aqui, pretendo refutar - se me é possível esse hercúleo feito.
4. Devo, ainda, registrar que tudo começou com um post do pastor Elildes, no facebook, com essa declaração: "Bíblia e oração. Simples e profundo", a que me senti compelido a comentar, considerando a hipótese de que esse modelo pastoral acabe funcionando como um mecanismo de alienação dos crentes, facilitando o trabalho das igrejas neo-meganeos, que se tem criticado, inclusive eu.
5. Se você ler meus dois textos acima, compreenderá a respeito do que Cleinton declara que estou equivocado. Todavia, é tão grave a declaração de meu amigo que convém ressaltá-la aqui:
você está equivocado, osvaldo. pesquisas antropológicas e sociológicas mostram que os neopentecostais oram pouco e pouco leem a bíblia. o negócio deles é mais a presença nos cultos milagrosos, pois "é só ali que a coisa acontece de verdade". os neopentecostais perdem pouco tempo em casa com a bíblia e a oração, mas muitíssimo tempo nos templos e diante da tevê, ouvindo baboseiras que nada têm a ver nem com bíblia e nem com oração. uma análise antropológica bem rala te mostrará que as orações nos templos são sempre as mesmas - o que mostra uma padronização que busca simples "funcionalidade" -, os gestos e até o modo de falar se repetem o tempo todo nos "pastores" e um novo cânon é composto, numa hermenêutica toda peculiar, para que a bíblia fale o que os espertos querem falar. quem ainda lê bem e ora bem são os pentecostais (ainda que sejam em sua maioria analfabetos funcionais), pois os tradicionais oram pouquíssimo, não andam mais com bíblias e só a leem - já recortada no "novo cânon" que interessa - nos datashows da vida. portanto, discordo de sua tese sobre o binômio bíblia/oração, pois a considero reducionista, beirando à perversidade, já que não é crítico ao ponto correto, uma vez que coloca sempre "todo mundo num saco só".
6. Cleinton está nos cascos comigo. Vou comentar alguns pontos.
7. Eu ponho todos num saco só. Bem, se com isso se quer dizer que eu olho o fenômeno a partir de determinada altura, a partir de cuja visada estão todos num saco só - sim. A questão é se meu amigo Cleinton e outros críticos de minha provocação conseguiram pôr-se - ainda que metodologicamente - no mesmo ponto em que eu me ponho para pôr todos no mesmo saco.
8. O ponto em que me ponho é esse: alguma prática pastoral, sistemática, que se possa identificar com política denominacional (não conto as exceções desobedientes do sistema, que conheço, mas são tão raras quanto nióbio), logo, alguma prática institucional de qualquer igreja evangélica ensina o crente a ler a Bíblia, criticando-a, de modo a pôr-se a salvo dela mesma e da manipulação quer do clero quer de terceiros?, ou todos aplicam aquela máxima acrítica de revelação, doutrina, verdade inquestionável, de modo que a leitura dessa igreja é a certa e a das outras erradas? Não conheço uma. Se é para eu ser refutado, é aqui que devo ser. Basta que seja mostrada uma prática de autonomia do crente em face da própria Bíblia, da doutrina, da fé e da igreja que admitirei que estou equivocado. Caso contrário, retórica.
9. Reducionismo de minha parte, diz Cleinton. É, claro. Não há avaliação de superfície global que não seja reducionista. A alternativa é analisar igreja a igreja e dar por isso impossível a avaliação. Tenho ressaltado a possibilidade de exceções. Basta-me o registro. Todavia, o que se dá por reducionismo é uma fraude epistemológica ou um reducionismo honesto? As igrejas evangélicas - todas - fazem ou não da Bíblia catequese doutrinária, moral e espiritual, sem crítica de qualquer espécie, salvo às doutrinas, moral e espiritualidade dos outros? E, além disso, usam ou não a oração como ratificação subjetiva dos convencimentos cognitivos da "educação cristã"?
10. Se a resposta for sim, Cleinton, lamento - reducionismo necessário e legítimo. Se a resposta for não, me pegou pelo pé. Pegou? E, mais uma vez - sempre há exceções...
11. Perversidade de minha parte - pelo menos, quase. A acusação de perversidade deriva dos outros dois pontos. Eu espero não ter feito um juízo moral da pastoral evangélica. Espero ter feito uma leitura de conjuntura honesta e verificável. Se assim agi, não há como considerar-me perverso. Se meu juízo decorre de arrogância, presunção, ressentimento, qualquer coisa, ignorância, má fé, aí, sim, perversidade. O juízo que me faz é perverso, porque decorreria de certificar-se do que realmente fiz, intencionalmente. Mas assevero: minha crítica tem a pretensão de ser correta, e, se não é, deve ser demonstrado o seu equívoco nos fatos, não nos sentimentos.
12. Os neopentecostais nem lêem a Bíblia e oram pouco, de modo que minha tese está equivocada. Entendi direito? Em que momento eu disse que eles o fazem? Eu me referi a uma estratégia pastoral - a de anunciar que Bíblia e oração expressam a essência da vida cristã, e eu aleguei que o modelo apenas logra produzir uma geração acrítica, porque se não é ensinado ao povo ler criticamente - e não é - ler a Bíblia e orar promove exatamente o que eu estou dizendo que promove: uma espiritualidade rasa, acrítica, alienada - e isso a despeito de todas as boníssimas intenções da pastoral.
13. "Quem ainda lê bem e ora bem são os pentecostais (ainda que sejam em sua maioria analfabetos funcionais)" - li mesmo isso, meu amigo? Como alguém pode "ler bem" se é analfabeto funcional? Talvez esse seja um flagrante do fenômeno que estou criticando - além de o povo não saber ler direito, por questões educacionais, lê pelo viés confessional - o que se produz são pessoas prontas para a reprodução de discursos normativos-denominacionais sob o regime discursivo da "revelação". Isso se pode ver em qualquer igreja. E não é por outra razão que a pastoral treme de medo de seminários críticos - porque a crítica rompe justamente o círculo mágico...
14. Tentarei dizer pela última vez, e de modo o mais claro possível: o modelo pastoral Bíblia e oração, conforme praticado no conjunto das igrejas evangélicas brasileiras, irrefutavelmente dissociado que está da perspectiva crítica de si mesmo, da própria Bíblia, da doutrina, da norma, da teologia, é, a meu ver, fator preponderante na formação de uma massa acrítica de longa fermentação, de sorte que as novas igrejas se servem dessa espiritualidade acrítica, justificada pelo modelo Bíblia e oração, para dar um salto de "qualidade", reduzindo a expressão religiosa à máxima subjetividade, por ironia tornando Bíblia e oração inclusive dispensáveis.
15. Acho que meus amigos pastores não conseguem ver o que estou dizendo - salvo se há miragem em meus olhos (há?) - porque não conseguem ver ou admitir que não basta boa vontade, que pôr a Bíblia na mão do povo e orientar que orem não produz os efeitos que eventualmente se esperaria. Como admitir que eu sou um dos fornecedores da massa acrítica que lota os templos sagrados da pós-modernidade?
16. Não está em jogo aqui se há sinceridade no crente ou não. Ontem foi me retrucado isso: usamos Bíblia e oração com sinceridade... eles, não. Eis aí, mais uma vez, a expressão do preconceito, que não permite que vejamos o que realmente fazemos. Boa vontade e nada é a mesma coisa, quando o mecanismo pedagógico produz autômatos dirigíveis pela máxima espiritualidade circulante. À melhor oferta da experiência de Deus, sempre legitimada pelo binômio Bíblia e oração, lá está a freguesia, o cliente.
17. Que não era isso que a patoral queria, até imagino. Que a pastoral desgoste do desencaminhamento evangélico brasileiro, até admito. Que a pastoral não veja que ela é a principal causa - entre os evangélicos - para o estado de coisas, bem, aí não posso fazer nada. Salvo, dizer.
18. O fenômeno neo não é um produto direto da pastoral. Há outros agentes. Mas, no que diz respeito ao recorte evangélico, não tenho dúvida - e estou aberto a refutações que, de fato, o sejam: a pastoral de modelo Bíblia e oração alimenta eficientemente a fornalha espiritualíssima do mercado subjetivo, que pode dispensar até o uso in loco dela, porque a retórica de "Bíblia" e "oração" já fez todo o efeito necessário.
19. A pastoral plantou o milharal. Os gafanhotos vão consumi-lo. A pastoral quer dizer que não tem culpa. Bem, é próprio dos gafanhotos devorar. Mas a pastoral poderia ter protegido sua plantação. Não o fez. Pelo contrário - animou cada grão com o desejo de mais espiritualidade: quando chegou a nuvem, bem, o milharal agora tem outro dono.
20. Assim, meu amigo, num sistema interconectado, não adianta uma observação de campo, digamos, antropológica, em que o observador anote que, entre dez que entram, oito não carregam Bíblia. O que isso tem a ver com o que estamos discutindo? Nada. Não é o uso da Bíblia aí, nas neo, que interessa: é o uso dela nas tradicionais, do jeito acrítico, alimentando uma alienação crítica crônica - penso que irreversível para a atual geração.
21. Seus antropólogos, meu amigo, nesse caso, deveriam subir num poste, num prédio alto, e observar o campo com mais amplidão.
22. Deliro?
23. Seja como for, meu amigo, agradeço sua réplica, porque ela me permite trazer à superfície da consciência questões que ficariam escondidas, caso me faltasse a provocação. O outro é, em todos os casos, um excelente gatilho para o eu... Obrigado.
23. Seja como for, meu amigo, agradeço sua réplica, porque ela me permite trazer à superfície da consciência questões que ficariam escondidas, caso me faltasse a provocação. O outro é, em todos os casos, um excelente gatilho para o eu... Obrigado.
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
4 comentários:
E aí, Osvaldo?
Olha só, eu entendi - ou acho que - a relação de causa e efeito que você traça entre o modelo "Bíblia e Oração" de ontem e a predisposição das pessoas a aceitarem o que as "neo" lhes enfiam goela abaixo hoje. Ok!
Mas a crítica, se fosse adotada ontem, não teria, a par de preparar as pessoas para não aceitar o entulho das "neo", esvaziado já os templos de ontem mesmo?
Veja que não estou aqui querendo dizer que é melhor ter templos cheios hoje, ainda que sejam das "neo" - e um pouco para as outras - do que termos nos tornado, religiosamente falando, uma Europa pós-cristã, mas com a crítica não teríamos nos tornado isso mesmo, um Brasil pós-cristão?
Vai lá, pode descer o lenho (rsrsrs)!
olá, osvaldo.
sim, eu me ponho no mesmo nível de crítica para dar a visada e, ainda assim, encontro bolsões de massa crítica dentro do clero. acho que não serei vaidoso se disser que faço parte de um deles. não, não todos aplicam a máxima acrítica da verdade inquestionável; muitos questionam e o fazem com muita propriedade. conheço algumas igrejas - e dei aulas de escola bíblica por anos no mesmo procedimento - onde o estudo bíblico com crítica é feito. sim, é possível tratar de tal tema sem ser reducionista. por conta disso é que indiquei trabalhos antropológicos dos vários sérios pesquisadores facilmente encontrados no país. pedir aos antropólogos para subirem mais alto e se distanciarem do "objeto"? bem, aí já não seria trabalho para eles, pois, por questão de método e escala, o trabalho cairia melhor nas mãos dos sociólogos. sim, minha crítica está calcada nos fatos e estudos - e não em sentimentos, pois não sinto nada de diferente do que sentia antes da leitura deste texto. achei-o sim reducionista e perverso, pois, não conseguindo alocar tais questões nas metodologias e práticas das humanidades, reduziu todos os evangélicos num saco só; não faço parte deste saco. conheço muita gente que não faz. se o negócio era falar que o ponto é a "estratégia pastoral" e não o fato de os neopentecostais lerem de fato e orarem, então isso deveria ter ficado claro, pois o texto faz com que entendamos categoricamente que QUANTO MAIS LEITURA BÍBLICA E ORAÇÃO, MAIS ALIENAÇÃO E ATRASO. quando falo que os pentecostais leem bem, não digo da qualidade da leitura, mas da busca, ainda que sendo de pessoas analfabetas funcionais, em grande parte. o analfabeto funcional não é alguém que não lê; é alguém que lê e escreve precariamente, o que acontece com vários dos meus alunos de graduação! no caso dos irmãos pentecostais, pelo menos a bíblia é usada para a alfabetização primária, ainda que não seja isso suficiente. portanto, o que eu quis dizer foi OS PENTECOSTAIS AINDA BUSCAM A LEITURA E A ORAÇÃO, AINDA QUE A LEITURA SEJA BASTANTE PRECÁRIA. o "ler bem" aqui não significa qualidade, ficou claro agora ou preciso trocar o termo para "buscam ler bastante, ainda que com o analfabetismo funcional imperando forte?". o ponto em que concordamos - e que deveria ter ficado logo claro no seu texto: a estratégia pastoral de leitura bíblica (cerceada) e oração (formatada) tem tornado o binômio bíblia/oração dispensável. sim, concordo em número, gênero e grau. last, but not least: não mande os antropólogos subirem em prédios e postes, pois, como eu já devo ter deixado claro, isso fará com que eles percam os empregos para os sociólogos, cuja visada é mais panorâmica em método e escala. precisamos dos antropólogos, pois eles não estão preocupados em quantos andam com bíblia ou não, mas em buscar explicações, in loco e em profundidade, para fenômenos como "bíblia e oração em baixa no movimento evangélico do século XXI", algo que carece de estudos mais profundos. há braços...
Bel, Cleinton, nesse caso, basta inserir-se e aos exemplos que você conhece nas exceções.
Já expus meu posicionamento epistemológico para a questão: referi-me aos "seus" antropólogos - e eu diria que a realidade não deve se submeter ao olhar, mas o olhar à realidade. Nosso problema em discussão não é local, de modo que se os "seus" antropólogos não conseguirem olhar o todo, não servem para a análise. Estamos em dias de transdisciplinaridade, e acredito que um antropólogo saberia fazer a transposição.
Cheguei cansado da Faculdade. Depois respondo mais.
Somos dois gladiadores.
Gladiadores também descansam.
Um abraço e até já
Osvaldo
Luciano disse: "Mas a crítica, se fosse adotada ontem, não teria, a par de preparar as pessoas para não aceitar o entulho das "neo", esvaziado já os templos de ontem mesmo?
Veja que não estou aqui querendo dizer que é melhor ter templos cheios hoje, ainda que sejam das "neo" - e um pouco para as outras - do que termos nos tornado, religiosamente falando, uma Europa pós-cristã, mas com a crítica não teríamos nos tornado isso mesmo, um Brasil pós-cristão?"
É, Luciano, é o risco. Você está cobertíssimo de razão. Era e é um risco orientar criticamente a membresia. Sua fala, todavia, leia-a com atenção: você não acaba de me confessar que, no fundo, sabe que as pessoas só estão lá porque estão anestesiadas, e que a maioria debandará tão logo saibam que podem?
O que mais eu preciso dizer, Luciano?
Osvaldo
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