quinta-feira, 25 de novembro de 2010

(2010/581) Teologia pública na República - não vai dar certo isso



1. Se os leitores desejarem conferir uma constrangedora exposição de combate, neste corner, a Teologia, a religião, a fé, a "Bíblia, Palavra de Deus", com direito à referencia explícita ao "chanceler" do Mackenzie, naquele corner, posições nem um pouco acanhadas e comedidas, de caráter, digamos, "republicano", favor reportarem-se, e depois retornem!, ao post A teologia do chanceler do Mackenzie, no blog do Nassif, sendo necessária a leitura dos comentários. É alguma coisa para fazer corar.

2. Dá-se ocasião para que eu comente, então, sobre "Teologia pública". Digo-o de pronto: se não se tratar de uma teologia telúrica, quero dizer, epistemologicamente presa à cultura e à história, sem acesso privilegiado ao céu ou ao inferno, sem tergiversações "malandras" de disfarce "confessional" - chama-se confessional ao que é ainda e sempre medieval, político e anacrônico, como se isso justificasse o anacronismo, como se o termo "confissão" fosse um abrakadrabra, um shazan -, logo, uma autência "ciência humana", qualquer Teologia pública é uma indecência na República. Se está pressuposta a argumentação com base em supostas revelações, iniciações de mistérios e arcanos, viagens e visagens e que tais, não há a mínima possibilidade de a Teologia ser e estar pública. Sejam os teólogos minimamente educados, minimamente civilizados, trancafiar-se-ão dentro de seus templos, e aí, e só aí, despejarão suas palavras, seus mitos, suas crenças.

3. Sob a perspectiva republicana, a pregação pública, catequética, "evangelizadora", ouso dizer, é indecente. Por quê? Pela óbvia - caso contrário, estou absolutamente perdido e louco (pode ser!) - consideração de que, na República, a plataforma de argumentação tem de ser obrigatoriamente universal. Não é possível um jogo republicano em que João vá ao Céu, Maria, ao Inferno, José, ao Nirvana, Antonio, ao Hades, Miriam, ao Sheol, aquele, a Jesus, esse, a Exu, aquele outro, a Iemanjá, aquela, a Manitu, aquele ainda, a Buda, e, de lá, cada qual traga suas muito fundamentadas argumentações ontológicas - o argumento de um soará mito aos ouvidos do outro, o deus de um é o diabo do outro. O jogo republicano é um jogo não-religioso, não-teológico, não-metafísico, pela razão histórica, logo, inescamoteável, mesmo para os profissionais da fé, de que o jogo republicano foi inventado para superar justamente o jogo teológico, teocrático: os homens até se deixem governar pelo deuses - o "povo", não..

4. Não estou dizendo que as diversas crenças deveriam acabar. Não sei se fariam falta, é verdade, porque as necessidades que hoje temos delas, na sua ausência, nos levariam a criar outros mecanismos de satisfação, dado que não acredito que as religiões sejam meros caprichos humanos - todavia, não duvido que vivêssemos bem sem o sistema religioso tal qual inventado até agora. Mas recupero o fio de argumentação: estou dizendo que o jogo republicano impõe a mim e a você que, na ágora, na praça, quando estamos diante um do outro, reduzamos nossa base de argumentação ao que é comum a mim e a você ao mesmo tempo. No espaço da cidadania, da República, da "nação", não posso empregar argumentos cristãos, quero dizer, baseados nas doutrinas do Cristianismo, quando tenho, como interlocutores, não-cristãos - e, mesmo se todos nós fôssemos partícipes da mesma fé, ainda assim teríamos que, por força do jogo, reduzir nossa base retórica ao que é humano, demasiadamente humano...

5. Aí, que belo flagrante de infração do jogo republicano os argumntos desse senhor reverendo. Envergonha-me o fato de ele não ter vergonha. A isso se chama Apologética, nos cursos de Teologia - a cara-de-pau de defender o republicanamente indefensável. A Apologética é a arma do desarmado - mas se lhe dão um fuzil e o direito de usá-lo, eis a Inquisição, senhores... Ele não é capaz de ter aprendido que a Bíblia pode ser tratada como Palavra de Deus por ele e por seus féis - e só entre eles, mas que a República tem nela, nas Escrituras, apenas a consideração de que sejam livros sagrados de uma determinada fé, tão sagrados, para a República, quanto o Corão e os sonetos de Bocage. Todavia, nos argumentos desse senhor, profissional da Teologia, o fato de ele crer na Bíblia como Palavra de Deus pode e deve ser usado como argumento sobre todos os cidadãos. Não há como não concluir que esse senhor vive como que na Idade Média, como se a retórica pública se desse em meio a um regime teocrático, do qual, claro, ele fosse porta-voz. Se lhe ensinaram algo no Seminário, temo que tenha esquecido, se é que aprendeu. Vá um sacerdote do candonblé argumentar na mesma base, esse senhor reverendo há de satanizá-lo, revelando o grau de cidadania republicana a que se pode chegar, quando se troca o jogo republicano pelo jogo teocrático.

6. Naturalmente que a academia tenta - mas tenho medo das tentativas dessa academia! Mas a Teologia que se produz a partir de dogmas não tem qualquer parentesco com a academia universitária, ainda que a fachada dos prédios ostentem lá um letreiro com a mesma expressão. No entanto, a academia teológica, quando vai a público, falar de "Teologia pública", terá ela a noção do desastre republicano que defende? O que ela quer? Uma praça em que cada religioso palreie suas crenças, todas, para si mesmas, verdadeiramente verdadeiras, de granito e mármore de tão "duras", numa pantomina sem sentido? Ora, que isso se pratique dentro dos templos! Mas não! O que as religiões de conquista queriam e querem há séculos e ainda hoje, lá e então, é a conquista das massas - e, por isso, devem esforçar-se para ter acesso, ainda que anti-republicano - porque Deus é maior do que a República, naturalmente!... - à mente dos cidadãos republicanos, nessa feira de deuses e deusas, nessa Babel de crenças e descrenças, de graças e desgraças que é o mercado religioso.

7. Que os reverendos bradem suas espadas, quero dizer, seus argumentos velhos, ocos, puídos, descontextualizados, anacrônicos, superados, vá lá - digamos que faz parte de sua "profissão", e, quantas vezes, não é para o "mercado interno" que falam? Mas a Teologia universitária, antes de arvorar-se em portadora de uma "Teologia pública" (se não me engano, inventada no país em que a fé evangélica justifica a invasão do Iraque e legitimava, ainda ontem, um governo mentiroso e invasor), deveria é fazer um acerto de contas civilizatório, e decidir se, afinal, é, de fato, republicana. Se for, deverá, imediatamente, converter - transformar - a plataforma em que opera, transferindo-se da retórica confessional e metafísica, para a plataforma das Ciências Humanas. Caso contrário, não terá nada de republicana, conquanto tenha nas mãos a chave da sala de aula.

8. Os teólogos devem pagar o preço - ou não honrarão a vocação. Não se pode mais ser teólogo e sacerdote, estar a serviço da fé e da crença, ao mesmo tempo em que se deseja inserir-se na cidadania e na civilização republicana. Se o desejo é o sacerdócio, escolheu-se o interior dos templos, e é aí que se deve ficar. Se se optou pela cidadania, não há mais espaço para a boca de Deus - e aí só cabe uma Teologia, não-confessional, crítica, heurística. Ou se está a serviço do dogma, o que exigirá um discurso interno, de defesa do obscurantismo e do atraso - que é como julgo o discurso do reverendo - ou se está a serviço da República, desse modo novo de ser habitante de uma nação que não nega o direito à fé, mas solicita, muito gentilmente, que seja assunto de foro íntimo. Não há lugar na República para uma Teologia pública - ao menos enquanto a Teologia não se der conta de que "Deus está morto".


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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