quinta-feira, 25 de novembro de 2010

(2010/582) A crítica da ideologia tem "carga neutra" - o resultado que tem em vista depende da ideologia de quem a opera


1. Ainda reverbera em minha cabeça a demonstração límpida que fez Losurdo de um fenômeno muito comum na filosofia - a crítica da ideologia é relativamente neutra: é a posição, por sua vez igualmente ideológica, logo, política, de quem opera a crítica da ideologia que determinará, ao fim e ao cabo, o rumo da argumentação. Flagrada em pleno desenrolar-se, não se pode saber, ai, agora, em que resultará a crítica.

2. Não tratarei disso, e uso o caso apenas como uma ilustração argumentativa: Marx e Nietzsche descrevem o mesmo caso político-social: os operários das fábricas modernas (século XIX) não estavam em situação assim tão substancialmente diferente da situação dos escravos ligeiramente mais antigos, e, a rigor, ainda existentes nas colônias européias e nos Estados Unidos. Aliás, a situação de vida de certos escravos era até melhor do que a de muitos operários. Todavia, essa critica que fazem não trabalha para o mesmo fim. Marx vai, com isso, denunciar a mais-valia, a opressão do trabalhador pelos seus "donos", os donos do capital. É, digamos assim, "profética", em sentido clássico, a crítica da ideologia, em Marx. Já em Nietzsche, ela está a serviço de um estoicismo às avessas, por isso cínico: é a conclamação dos pobres para a resignação, dos ricos, para o endurecinmento do coração, diante do risco da compaixão, de resto, anti-civilizatória, a defesa da própria escravatura como condição indispensável da civilização. Na crítica, estão aqui, ambos, mas um vai para a direita, outro, para a esquerda.

3. Vejo o mesmo fenômeno na Teologia e na crítica à metafísica. Duas pessoas argumentam que a metafísica se foi, que o século XIX é como uma ação de terraplenagem em larga escala. Dois teólogos podem tratar o século XIX como uma nova Torre de Babel às avessas - no mito bíblico, Deus derruba a torre, porque não quer que os homens cheguem a incomodar seu reinado celeste soberano. No XIX, são os homens mesmos que derrubam a torre, porque se dão conta de que não há como atravessar o firmamentum que nos separa do mundo feérico - noológico! - da divindade. Assim, para esses dois teólogos, o mundo metafísico dos deuses é dissolvido em pó, dilúído em água e derramado na terra árida do nunca mais.

4. Todavia... Um o faz a partir da consciência de que não apenas o discurso está superado, mas a realidade que se construiu por meio daquele discurso igualmente ruiu, juntamente com os tijolos da torre. Para ele, a queda da metafísica não significa apenas um detalhe referencial a menos, mas a retirada, abrupta, de uma peça que, sem ela, todas as demais perdem escora, e caem conjuntamente, de sorte que cai a metafísica, cai o discurso que a engendrava, cai a realidade assim sustentada, caem as relações daí conseqüentes, cai o jogo, cai a prática, cai o mundo. Trata-se de uma iconoclastia inegociável que apenas a mentira-para-si, a self deception, escamoteia.

5. Já o outro... Cai a metáfisica, ele mesmo o diz. Mas, ai, seu coração observa, nostálgico, o circo comunitário. O sábio de Zaratustra desce do monte, e surpreende-se de que, quem suba, não esteja informado da morte do Ancião de Dias. Nosso teólogo, ao contrário, consciente que está, vá lá, da passamento divino, ele se pergunta se vale a pena tornar pública a novidade. Conclui que não, conquanto as contas não estejam, por assim dizer, tornadas públicas - seu coração é pastoral, ele dirá. Pergunta-se como pode, ao mesmo tempo, conciliar o XIX e a prática pré-XIX, isto é, como pode manter tudo como está, como se nada tivesse acontecido, ao mesmo tempo em que possa dizer, para si mesmo, à noite, que, sim, aconteceu, sim. E descobre a magia das palavras - o feitiço da metáfora, a arte da prestidigitação poética: basta que diga as palavras que todos conhecem, trate-as como algodão doce, não tem importância, porque apenas o que se requer é que as palavras sejam ditas, que a língua toque o açúcar mágico das homilias, porque as pessoas querem ser enfeitiçadas, pedem por encantos, clamam por magia, porque a força das palavras está nelas mesmas, e não no referencial que eventualmente representam. Morto o referencial, vivas as palavras, lá vai ele, guia de anjos, porque a fé vem pelo ouvir...

6. Por isso, não se pode julgar como irmãos dois discursos que tocam a mesma "verdade". As informações são neutras, sempre. O que se faz com elas é que revela de que lado você está. E aqui, não se trata de dizer se há um lado bom ou um ruim - estou apenas dizendo que não se trata do mesmo lado, absolutamente. E bastaria uma única pergunta: aos canalhas da fé, aos impostores da doutrina, aos levianos do Evangelho - importa que sejam apenas palavras? Não, naturalmente, porque eles são os primeiros a se servirem delas para a operação do opróbrio teológico, espetáculo aviltante do circo evangélico contemporâneo - embora não só dele. Ora, meus amigos, não vos parece muito a calhar uma "saída" que nada mude, mas que, no alto da academia, tenha ares de genialidade? A questão é: a calhar... para quem?






OSVALDO LUIZ RIBEIRO

Nenhum comentário:

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...

Sobre ombros de gigantes


 

Arquivos de Peroratio