1. Não há "sentido" na vida - se ela é tomada como fenômeno biológico. Nessa dimensão física da existência, a vida consiste em nascer, procriar e morrer. No caso dos machos de içá, ou saúvas, essa dimensão "prática" chega ao absurdo de fazer dessa pequena formiga um pênis com asas - sua vida consiste mera, única e simplesmente em voar, para fecundar a fêmea e, logo depois, morrer. Há feministas que adorariam essa dimensão, se aplicada à vida humana. No nosso caso, contudo, a coisa é mais complicada.
2. Entre e no meio de viver, procriar e morrer há cem anos de um sem número de coisas a fazer. A isso chamamos vida. E não há sentido aí - se não o colocarmos. Saímos da vida meramente animal, mas não trouxemos conosco nada que pudesse efetivamente fazer dessa travessia entre o nascer e o morrer algo de intrinsecamente significativo. Tudo depende, aí, do que fazemos, dos eixos existenciais que assumimos.
3. É o eixo existencial, aquilo a que você se apega, que confere sentido à sua volta. Os objetos todos que lá e aí estão são transmutáveis - eles assumem o aspecto que o eixo de sentido a que você se apega lhes confere. Esse eixo de sentido é aquilo a que você dá toda a sua atenção, aquilo que você considera significativo, aquilo que você acha que realmente vale a pena, e que você faz. É ele que coloca você no centro de um mundo, do seu mundo - e tudo à sua volta torna-se quintal de sua casa. Pode ser a política, a religião, a caridade, os jogos, o esporte, os estudos, a pesquisa, o amor, o sexo, o roubo, o crime, as coleções, o cinema, qualquer coisa. É o eixo, o seu eixo. Eixo que você escolhe, e escolhe não mais como ser biológico, mas como ser psicológico e hermenêutico, de modo que é aí que você nasce, realmente.
4. Nascido essa segunda vez, mas agora por seu próprio ato de volição, de desejo, de apego ao eixo de sua escolha, todos os demais objetos e pessoas da vida organizam-se ecossistemicamente em torno desse eixo, as mais relevantes mais próximas, as menos, mais distantes. Você acaba de se transformar num deus cosmogônico, plantado sobre sua montanha cósmica! Esse é o seu mundo, conforme você o fez e vê. E você viverá nele enquanto estiver agarrado ao eixo que escolheu. Enquanto aí estiver, como tisiu no visgo, esse mundo parecerá forte, efetivo, real, durável, eterno, o melhor dos mundos, inacabável, interminável, perfeito. Santa tolice! Amanhã de manhã, semana que vem, daqui a um ano, dez, você abandonará o eixo que escolhera, ou porque está cansado, deprimido, ou porque algo de muito trágico sucedeu aí, e, então, imdiatamente, tudo desaba. Anote isso: tudo desaba. Aquilo que parecia eterno e forte, revela-se temporário e frágil, o que era apetite, converte-se em quase nojo. Seu mundo acaba. Cai. Desaba. Como as colunas de Casteller...
5. E permanecerá assim, por um tempo, sem que nada mais faça sentido, chame sua atenção, revele-se atraente. Até que alguma coisa, sabe-se lá por que, chama a sua atenção. Dentro de você, uma descarga de energia, de libido, uma ação química preparada há milhões de anos, pequenas fagulhas elétricas do sistema sináptico, é lançada em seu sangue e na sua carne, e você brilha, seus olhos faíscam - você acaba de cair em outra arapuca: acaba de escolher outro eixo, e tudo à sua volta, de novo, há de se re-organizar, e você achará, de novo, que o mundo, de fato, tem sentido, e que, agora, finalmente, você achou seu rumo. Como você pode estar fora desse mundo todos esse longos anos?, você se perguntará, maravilhado de sua criação...
6. Mas, atenção: é um déjà vu. Como foi, será. E, mais cedo ou mais tarde, esse mastro altaneiro, esse axis mundi, essa bandeira de tempo vai apodrecer, como tudo, e você perceberá - mas por alguns instantes, apenas, é verdade, que fora dos eixos, que se não estamos grudados em visgos noológicos, não passamos de tabela periódica na forma de carne copulante, replicante - adubo para a própria vida. E você saberá disso, tão mais fortemente quando menos forte for sua adesão ao eixo psicodélico do sentido.
7. Por isso, meu amigo, peça a Deus para estar tão agarrado ao seu poste, à coluna semântica de sua existência efêmera, que sequer se dê pelo fato de que, afinal, entre os machos de içá e nós há apenas um décimo de escala, e, ainda assim, segundo nossa escala e fita métrica...
2. Entre e no meio de viver, procriar e morrer há cem anos de um sem número de coisas a fazer. A isso chamamos vida. E não há sentido aí - se não o colocarmos. Saímos da vida meramente animal, mas não trouxemos conosco nada que pudesse efetivamente fazer dessa travessia entre o nascer e o morrer algo de intrinsecamente significativo. Tudo depende, aí, do que fazemos, dos eixos existenciais que assumimos.
3. É o eixo existencial, aquilo a que você se apega, que confere sentido à sua volta. Os objetos todos que lá e aí estão são transmutáveis - eles assumem o aspecto que o eixo de sentido a que você se apega lhes confere. Esse eixo de sentido é aquilo a que você dá toda a sua atenção, aquilo que você considera significativo, aquilo que você acha que realmente vale a pena, e que você faz. É ele que coloca você no centro de um mundo, do seu mundo - e tudo à sua volta torna-se quintal de sua casa. Pode ser a política, a religião, a caridade, os jogos, o esporte, os estudos, a pesquisa, o amor, o sexo, o roubo, o crime, as coleções, o cinema, qualquer coisa. É o eixo, o seu eixo. Eixo que você escolhe, e escolhe não mais como ser biológico, mas como ser psicológico e hermenêutico, de modo que é aí que você nasce, realmente.
4. Nascido essa segunda vez, mas agora por seu próprio ato de volição, de desejo, de apego ao eixo de sua escolha, todos os demais objetos e pessoas da vida organizam-se ecossistemicamente em torno desse eixo, as mais relevantes mais próximas, as menos, mais distantes. Você acaba de se transformar num deus cosmogônico, plantado sobre sua montanha cósmica! Esse é o seu mundo, conforme você o fez e vê. E você viverá nele enquanto estiver agarrado ao eixo que escolheu. Enquanto aí estiver, como tisiu no visgo, esse mundo parecerá forte, efetivo, real, durável, eterno, o melhor dos mundos, inacabável, interminável, perfeito. Santa tolice! Amanhã de manhã, semana que vem, daqui a um ano, dez, você abandonará o eixo que escolhera, ou porque está cansado, deprimido, ou porque algo de muito trágico sucedeu aí, e, então, imdiatamente, tudo desaba. Anote isso: tudo desaba. Aquilo que parecia eterno e forte, revela-se temporário e frágil, o que era apetite, converte-se em quase nojo. Seu mundo acaba. Cai. Desaba. Como as colunas de Casteller...
5. E permanecerá assim, por um tempo, sem que nada mais faça sentido, chame sua atenção, revele-se atraente. Até que alguma coisa, sabe-se lá por que, chama a sua atenção. Dentro de você, uma descarga de energia, de libido, uma ação química preparada há milhões de anos, pequenas fagulhas elétricas do sistema sináptico, é lançada em seu sangue e na sua carne, e você brilha, seus olhos faíscam - você acaba de cair em outra arapuca: acaba de escolher outro eixo, e tudo à sua volta, de novo, há de se re-organizar, e você achará, de novo, que o mundo, de fato, tem sentido, e que, agora, finalmente, você achou seu rumo. Como você pode estar fora desse mundo todos esse longos anos?, você se perguntará, maravilhado de sua criação...
6. Mas, atenção: é um déjà vu. Como foi, será. E, mais cedo ou mais tarde, esse mastro altaneiro, esse axis mundi, essa bandeira de tempo vai apodrecer, como tudo, e você perceberá - mas por alguns instantes, apenas, é verdade, que fora dos eixos, que se não estamos grudados em visgos noológicos, não passamos de tabela periódica na forma de carne copulante, replicante - adubo para a própria vida. E você saberá disso, tão mais fortemente quando menos forte for sua adesão ao eixo psicodélico do sentido.
7. Por isso, meu amigo, peça a Deus para estar tão agarrado ao seu poste, à coluna semântica de sua existência efêmera, que sequer se dê pelo fato de que, afinal, entre os machos de içá e nós há apenas um décimo de escala, e, ainda assim, segundo nossa escala e fita métrica...
TrevasAugusto dos Anjos
Haverá, por hipótese, nas geenas
Luz bastante fulmínea que transforme
Dentro da noite cavernosa e enorme
Minhas trevas anímicas serenas?!
Raio horrendo haverá que as rasgue apenas?!
Não! Porque, na abismal substância informe,
Para convulsionar a alma que dorme
Todas as tempestades são pequenas!
Há de a Terra vibrar na ardência infinda
Do éter em branca luz transubstanciado
Rotos os nimbos maus que a obstruem a êsmo...
A própria Esfinge há de falar-vos ainda
E eu, somente eu, hei de ficar trancado
Na noite aterradora de mim mesmo!
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
2 comentários:
Olá,
Não me parece possível ser feliz sabendo que é apenas um eixo temporário em que me agarro aquilo que, no momento, parece ser o que confere a razão do continuar a existir. O fato de perceber a fragilidade do eixo já o turva. Perde parte do encanto.
Seria muita ingenuidade minha conjecturar a possibilidade da felicidade? Ou será que somos seres fadados (sem qualquer conotação dramática) à infelicidade?
Meu amigo, tem-se que aprender a ser ser humano. Mentiram para nós por milênios - no nosso caso, décadas, dizendo-nos que a felicidade era uma posição axial absoluta no eixo cósmico... Nada, Heráclito já dissera da fragilidade inexorável da vida. É, pois, sacudir a cabeça, abandonar a inocência dos absolutos, e aprender o gozo do que é frágil e efêmero: a vida da gente no dente-de-leão! E seremos, sim, felizes...
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