346 (A) Podemos agora dar uma rápida olhada no percurso realizado pelo filósofo. Nós o vimos falar de três etapas na sua evolução, a 'metafísica', a 'iluminista' e a 'imoralista'. Na realidade, no que diz respeito à primeira etapa, convém fazer uma distinção ulterior. Aproveitando e radicalizando a lição de Burke e do romantismo alemão empenhado na crítica da revolução, O Nascimento da tragédia denuncia os efeitos devastadores da hybris da razão, mas identificando o seu início já em terra grega. É verdade, esse tema continua a
deixar vestígios vistosos em todos os escritos que precedem à virada 'iluminista'; nesse sentido, Nietzsche tem razão ao falar de uma fase 'metafísica' no seu conjunto. No entanto, por outro lado, é preciso não perder de vista as novidades importantes que intervêm já com a segunda e a terceira Inatuais. No plano mais exatamente filosófico, a crítica da visão meramente antiga da história é a crítica também da plataforma ideológica ao modo de Burke, incapaz de fundamentar e estimular a ação contra-revolucionária que se impõe e da qual o 'homem de Schopenhauer', ou seja, o 'rebelde solitário' se encarrega. No plano mais estritamente político, essa figura toma o lugar do membro da 'comunidade popular' celebrada nos anos de O Nascimento da tragédia.
347 (B) Com Humano, demasiado humano, vemos surgir um 'iluminismo' aristocrático que analisa impiedosamente as paixões, as ilusões, o fanatismo do movimento revolucionário e disseca no plano psicológico as palavras de ordem morais que ele agita. Enfim, a quarta e a última fase, que, no plano político, é sinônimo de 'radicalismo aristocrático' (...) e, no plano filosófico, de imoralismo, de afirmação da inocência do devir. O fio condutor, o elemento de continuidade é representado pela crítica, antes pela denúncia apaixonada da revolução e dos perigos mortais que ela faz pesar sobre a civilização.(aqui, permitam-me a digressão, é exatamente onde bifurcam nossos caminhos - Nietzsche vai para a "direita"m eu diria, para o partido aristocrático, ao passo que eu vou para a "esquerda", para o partido "popular", por assim dizer, mas, quem me conhece o sabe, sem os engajamentos partidários e, talvez, sequer as ações mínimas - apenas uma filosofia de gaveta e gabinete). O protagonista da luta assim evocada e auspiciada é, primeiro, o membro e o cantor da 'comunidade popular', que à hybris da razão e da revolução contrapõe o mito supra-histórico no qual se reconhece e com o qual se alimenta todo um povo, graças à visão trágica do mundo intimamente unido, não obstante a escravidão e a carga de sofrimentos que a civilização inevitavelmente comporta. Depois é a figura do 'rebelde slitário' que toma o lugar da anterior. Consciente de não poder mais apelar para uma 'comunidade popular' irremediavelmente desaparecida, ele agita, ao contrário, com gesto de desafio a sua solidão em contraposição à massificação produzida pela revolução e pela modernidade. Pretende mais do que nunca opor-se à revolução, mas com a consciência de que por ela deve saber aprender algo, a começar pela recusa a entregar-se de modo preguiçoso e inerte à tradição, para interromper a gradualidade do seu desenvolvimento com uma ação resoluta cheia de riscos e de dilemas morais. Segue-se a figura do 'iluminista' atristocrático que, tirando proveito também do 'iluminismo moral', zomba da pretensão da revolução de apelar para a razão e a justiça e sublinha, ao contrário, o que há aí de rude, de supersticioso, de intolerante, de fanático e de doentio. Intervém finalmente o aristocrata imoralista que, enquanto submete à suspeita e à dessacralização mais impiedosa os valores e os falsos ideais da revolução e da modernidade, ao mesmo tempo conserva fresco e intacto o seu fervor e o seu entusiasmo pelo novo que pretende realizar e que pretende realizar não mais como 'rebelde solitário', mas, como logo veremos, de modo organizado, apoiando-se no 'partido da vida' ou no 'novo partido da vida', a fundar.
2. Bem, e como eu sou maximamente legal, transcrevo entrevista de Domenico Losurdo a Marcos Flamínio Peres, no Folha online, a que, na verdade, tive acesso pelo blog do Zelmar.
Leia entrevista com Domenico Losurdo, biógrafo de Nietzsche
MARCOS FLAMÍNIO PERES
De formação marxista, o professor de filosofia na Universidade de Urbino (Itália) Domenico Losurdo fala sobre sua biografia "Nietzsche - O Rebelde Aristocrata", que está sendo lançada no Brasil. Destaca a importância dos aforismas na obra do pensador alemão, mas alerta que eles podem ser usados para "provar quase tudo".
Por que Nietzsche é tão popular?
Domenico Losurdo - Ele é um prosador muito fascinante, que se exprime, no mais das vezes, por meio de aforismos. Eles desdenham o cansativo concatenamento das demonstrações lógicas. Não há leitor que não consiga tirar da obra desse filósofo um aforismo que lhe pareça particularmente iluminador. Mas isso também favorece o arbítrio.
Como é a recepção de sua obra hoje?
Em nível internacional continua a prevalecer a "hermenêutica da inocência", contra a qual meu livro polemiza. Em todo o arco da sua evolução, Nietzsche não se cansa de repetir que a escravidão é o fundamento inalienável da civilização.
Como entender isso? O início da atividade literária de Nietzsche ocorre em meio à Guerra de Secessão (1861-65), que marca a derrota do Sul dos EUA em eternizar a escravidão negra.
Ele manifestou todo seu desprezo por Beecher-Stowe, a autora do célebre romance abolicionista "A Cabana do Pai Tomás".
Mas, onipresente em Nietzsche e no debate cultural e político da segunda metade do século 19, o tema da escravidão se dissipa ou se transforma numa inocente metáfora no âmbito da hermenêutica da inocência _(Bataille, Deleuze, Vattimo, Colli, Montinari etc.).
Assim o filósofo é "salvo", mas a um preço caro, atribuindo-se a ele uma capacidade limitada de entender e querer no campo político: ele teria feito recurso constante à "metáfora" da escravidão, estando totalmente às escuras na áspera polêmica e na luta que, sobre tal tema, se espalha em volta dele.
Está superada a tão falada relação entre Nietzsche e nazismo? Ele ainda está marcado pelo irracionalismo?
A categoria de "irracionalismo" não me parece particularmente produtiva para explicar Nietzsche e Hitler.
São claros os elementos de continuidade e descontinuidade que subsistem entre um e outro. Quando lemos em Nietzsche terríveis palavras de ordem ("aniquilamento das raças decadentes", "aniquilamento de milhões de malsucedidos"), não podemos deixar de pensar na tradição colonial e no sociodarwinismo, herdados e radicalizados por Hitler.
Também a celebração nietzschiana da escravidão nos reconduz ao nazismo. O Terceiro Reich pretendia encontrar na Europa Oriental, entre os eslavos, os escravos para trabalhar para a "raça dos senhores".
No entanto esse motivo é antípoda ao pensamento de Nietzsche, que, vivendo numa época histórica diferente (anterior à Primeira Guerra), se bate pela unidade da aristocracia de todos os países europeus, inclusive os da Europa Oriental.
O que Nietzsche tem a ensinar no século 21?
Só compreendendo o caráter extremamente reacionário do pensamento de Nietzsche é possível captar a sua grande capacidade desmitificadora.
Exatamente porque condena a abolição da escravatura, a democracia e o movimento socialista, Nietzsche acaba traçando um quadro bastante sombrio do Ocidente e, portanto, contestando sua pretensão de exportar ao mundo a "civilização", por meio da expansionismo colonial e da força das armas.
Não há dúvida de que uma crítica da "guerra humanitária" e do "imperialismo dos direitos humanos" não pode prescindir da lição de Nietzsche.
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
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