1. É cada vez mais curiosa a situação que flagro entre Nietzsche e eu. As suspeitas que eu carregava vão tornando-se a cada dia mais fortes, caminhando para a situação de convicção íntima. As informações que recolho junto a Domenico Losurdo, monumentalmente embasadas, solidificam minha percepção sobre essa admirável criatura, da qual me encontro cada vez mais perto e, ao mesmo tempo, cada vez mais longe. Admiro-o profundamente, e, todavia, como somos diferentes!, e, se ele estivesse vivo, certamente labutaríamos em partidos opostos.
2. Diria que nos aproximamos naquilo que diz respeito à compreensão que temos acerca dos fundamentos da existência, sobre a base dessa existência, da vida humana. Nesse campo, caminhamos bem próximos: a vida humana constitui um fenômeno natural, isto é, compreende uma extensão do Universo como um todo, e parte constitutiva do fenômeno da vida, intimamente, pois, vinculada à Natureza (a partir daí, pode-se fazer Teologia, caso se queira - mas, jamais [crime de lesa humanidade], contra isso!).
3. Esse vínculo tem implicações: sendo não-moral a Natureza, a espécie humana carrega, consigo, essa condição de não-moralidade intrínseca. Não se trata de dizer aqui que o homem seja, em si, bom ou mal - pelo contrário: "em si", isto é, pensando o homem como animal natural, como bicho, como pedaço da Natureza, não lhe cabe essa adjetivação, essa dicotomia, seja para a direita, seja para a esquerda. Não há fundamento natural para a moral, para a ética, para a "teologia" e a metafísica. Aliás, não vejo como sendo outra a razão da patológica ira dos teólogos do século XX contra uma "teologia natural" - os teólogos sabem, exatamente (os conservadores mentem, afirmou Nietzsche) as conseqüêcias de a Teologia deixar-se fazer ao ar livre - porque ela precisa de mofo e bolor para considerar-se alguma coisa (provavelmente seu estado psicológico derive dos fungos das salas fechadas [atenção: é possível fazer Teologia "ao ar livre", mesmo com as portas fechadas, porque as portas não aprisionam o espírito - o problema da Teologia do século XX é que tanto o corpo quanto o espírito se deixaram agrilhoar aos pés das mesas medievais, no claustro da doutrina]).
4. Dizer que não há fundamento natural para a moral e a ética não é dizer que nãp haja princípios morais e éticos, muito menos que não haja ma dimensão moral e ética da/na existência humana. É simplesmente dizer que não há uma determinação moral ou ética vindo das profundezas da Natureza, não há "valores" morais ou éticos na Natureza, e, se os há em "Deus", é tão-somente pelo fato de lá os termos colocado, como projeção - nos termos da teoria de Feuerbach, antropologicamente incontestável (juízo meu). Os valores morais e éticos humanos foram, todos, inventados pelos humanos, ainda que possam ser considerados desdobramentos de pulsões naturais, como se houvesse correlatos "marais/éticos/espirituais" para processos orgânicos humanos - o "egoísmo", por exemplo, constitui(ria) um desdobramento das pulsões de sobrevivência...
5. E é nesse ponto que me desvio perpendicularmente de Nietzsche: Nietzsche cainha na direção de, fundamentando-se nessa ausência de fundamento bruto para moral e ética, acionar a estética para o tratamento das questões humanas - olhar o homem como se olha a planta! O grito dos pobres e dos fracos não precisa ser "ouvido" pelos homens fortes e ricos, porque não há culpa, não há nada de errado em que haja pobres que sofram, porque a Natureza assim o quis e fez e faz todos os dias. Com efeito, não há misericórdia e compaixão na Natureza - pelo contrário: as feras devoram justamente os fracos, os doentes, os aleijados, os filhotes, os velhos, de modo que a boa saúde, a sobrevivência, dos fortes dá-se, sem culpas, sem reorsos, mercê da submissão, queiram ou não, gritem ou não, tente ou não escapar das preasas e das garras, dos fracos. O grito do fraco é um espasmo muscular, um esgar do corpo... Sim, ali, na Natureza, de fato o é.
6. Todavia, eu caminho na direção, digamos, "profética", de Amós, mas, pelo amor de Deus!, sem querer praticar a delinqüência de fazer-me um Amós do século XXI. Nem mesmo um Amós de gabinete! Recorro a Amós apenas para deixar sob registro que a percepção é antiga - e tanto que o próprio Nietzsche culpa o judaísmo e o cristianismo pela sublevação moral dos escravos. Quanto a mim, o que penso é que a moral e a ética foram construídas/inventadas (arrancadas uns dos outros) pelos homens em sua longa caminhada de mútuo enfrentamento ecossistêmico. No começo, agíamos como a Natureza bruta age - feras contra feras, em cuja luta venciam, sim, os mais fortes - claro!, fosse essa força de um contra um, ou força de muitos contra um, o que não exigia que, individualmente, esses muitos fossem mais fortes que o adversário... Mas, milênios passados, aprendemos a linguagem, fizemos contas, inventamos outro jeito de viver, trocando, em lugar de exclusivamente roubando e matando - sim, ainda roubamos e matamos, mas digamos que a operação evolutiva (falo em sentido natural) não se completou totalmente.
7. Penso que a própria população do planeta, tornando-se majoritariamente pobre e fraca, mas igualmente em "diálogo" revolucionário com os fortes e ricos, construíram as teses da moral e da ética, que nada mais são do que, postas sobre a mesa de negociação, as reinvidicações dos olhos e dos corpos dos fracos, grito seu, fazendo-se forte pela inumerável quantidade de seus combatentes - também disso tinha ciência Nietzsche (aliás, a necessidade de que os fracos se façam fortes para que a moral e a ética seja levada a sério, para que seus direitos reinvidicados sejam aceitos como tais - pelos ricos e fortes - é uma constrangedora constatação de que a Natureza ainda age em nós: se queremos a justiça, será pela força, ainda que essa força seja concentrada numa maioria fraca, mas uma esmagadora maioria, que, apelando para até a não-violência, torne-se politicamente forte, por meio da pressão internacional - caso de Gandhi?). Não se trata, então, de um fundamento natural, mas de um fundamento histórico e sócio-político, um fundamento fundamentalmente humano, demasiadamente humano, mas, não, por isso, desconsiderável.
8. Sim, é verdade, não há nenhuma culpa ontológica, metafísica, teológica, diante do fato de um rico e forte oprimir um fraco e pobre. Nenhuma - ao menos naqueles termos. Porque há uma culpa: a que o fraco lhe impõe, se lhe impõe, e que, no conjunto dos fracos, torna-se um peso de ferro, um fogo modelador, uma espada afiada, e... revolução! Daí que Nietzsche ter horror à revluão - porque ele quer que a planta se deixe arrancar, a fome do agricultor, e que a plebe se deixe controlar, à vontade do feitor. Uma "chandala", como trata o povo, o proletariado, quer ter voz, isso é um horror!, não é sequer "natural". Talvez, um dia, quando e se for dada voz e linguagem aos animais, também eles façam sua revolução!
9. Curiosamente, vi isso num bando de... hienas. A fêmea alfa era, naquele caso, extremamente forte e cruel. O bando tornava-se, a cada dia, mais fraco. Eram dias de extrema seca em seu território africano, caça escassa, pouca carne, comida quase nenhuma. A alfa tomava para si toda a pouca carne caçada, e o bando tornava-se cada vez mais enfraquecido. S etentavam abocanhar algum pedaço, eram severamente castigados. E nenhuma culpa pesava sobre a fêmea alfa - a Natureza, plácida, apenas, assistia... Um dia, contudo, o bando inteiro atacou a fêmea alfa, tomou-lhe o lugar, pôs uma das irmãs como nova alfa, e a deixou ferida gravemente, expulsa do bando. Semanas depois, a antiga alfa pediu para retornar ao grupo - só, e ferida, morreria. Foi aceita. Mas não mais como alfa. O que me faz considerar que não haja, mesmo, um fundamento metafísico, abaixo de nós, acima de nós, para a moral e a ética - mas que a moral e a ética nasçam da relação entre a subjetividade viva e o ecossistema de competição: fora dessas relações, suprimidas ou a subjetividade viva ou a relação ecossistêmica de competição - também viva! - não faz sentido falar de moral e ética. Mas, nesse contexto, no nosso contexto, faz. E não fazê-lo não se torna necessariamente amoral e a-ético - mas tem suas conseqüências partidário-ideológicas.
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
2. Diria que nos aproximamos naquilo que diz respeito à compreensão que temos acerca dos fundamentos da existência, sobre a base dessa existência, da vida humana. Nesse campo, caminhamos bem próximos: a vida humana constitui um fenômeno natural, isto é, compreende uma extensão do Universo como um todo, e parte constitutiva do fenômeno da vida, intimamente, pois, vinculada à Natureza (a partir daí, pode-se fazer Teologia, caso se queira - mas, jamais [crime de lesa humanidade], contra isso!).
3. Esse vínculo tem implicações: sendo não-moral a Natureza, a espécie humana carrega, consigo, essa condição de não-moralidade intrínseca. Não se trata de dizer aqui que o homem seja, em si, bom ou mal - pelo contrário: "em si", isto é, pensando o homem como animal natural, como bicho, como pedaço da Natureza, não lhe cabe essa adjetivação, essa dicotomia, seja para a direita, seja para a esquerda. Não há fundamento natural para a moral, para a ética, para a "teologia" e a metafísica. Aliás, não vejo como sendo outra a razão da patológica ira dos teólogos do século XX contra uma "teologia natural" - os teólogos sabem, exatamente (os conservadores mentem, afirmou Nietzsche) as conseqüêcias de a Teologia deixar-se fazer ao ar livre - porque ela precisa de mofo e bolor para considerar-se alguma coisa (provavelmente seu estado psicológico derive dos fungos das salas fechadas [atenção: é possível fazer Teologia "ao ar livre", mesmo com as portas fechadas, porque as portas não aprisionam o espírito - o problema da Teologia do século XX é que tanto o corpo quanto o espírito se deixaram agrilhoar aos pés das mesas medievais, no claustro da doutrina]).
4. Dizer que não há fundamento natural para a moral e a ética não é dizer que nãp haja princípios morais e éticos, muito menos que não haja ma dimensão moral e ética da/na existência humana. É simplesmente dizer que não há uma determinação moral ou ética vindo das profundezas da Natureza, não há "valores" morais ou éticos na Natureza, e, se os há em "Deus", é tão-somente pelo fato de lá os termos colocado, como projeção - nos termos da teoria de Feuerbach, antropologicamente incontestável (juízo meu). Os valores morais e éticos humanos foram, todos, inventados pelos humanos, ainda que possam ser considerados desdobramentos de pulsões naturais, como se houvesse correlatos "marais/éticos/espirituais" para processos orgânicos humanos - o "egoísmo", por exemplo, constitui(ria) um desdobramento das pulsões de sobrevivência...
5. E é nesse ponto que me desvio perpendicularmente de Nietzsche: Nietzsche cainha na direção de, fundamentando-se nessa ausência de fundamento bruto para moral e ética, acionar a estética para o tratamento das questões humanas - olhar o homem como se olha a planta! O grito dos pobres e dos fracos não precisa ser "ouvido" pelos homens fortes e ricos, porque não há culpa, não há nada de errado em que haja pobres que sofram, porque a Natureza assim o quis e fez e faz todos os dias. Com efeito, não há misericórdia e compaixão na Natureza - pelo contrário: as feras devoram justamente os fracos, os doentes, os aleijados, os filhotes, os velhos, de modo que a boa saúde, a sobrevivência, dos fortes dá-se, sem culpas, sem reorsos, mercê da submissão, queiram ou não, gritem ou não, tente ou não escapar das preasas e das garras, dos fracos. O grito do fraco é um espasmo muscular, um esgar do corpo... Sim, ali, na Natureza, de fato o é.
6. Todavia, eu caminho na direção, digamos, "profética", de Amós, mas, pelo amor de Deus!, sem querer praticar a delinqüência de fazer-me um Amós do século XXI. Nem mesmo um Amós de gabinete! Recorro a Amós apenas para deixar sob registro que a percepção é antiga - e tanto que o próprio Nietzsche culpa o judaísmo e o cristianismo pela sublevação moral dos escravos. Quanto a mim, o que penso é que a moral e a ética foram construídas/inventadas (arrancadas uns dos outros) pelos homens em sua longa caminhada de mútuo enfrentamento ecossistêmico. No começo, agíamos como a Natureza bruta age - feras contra feras, em cuja luta venciam, sim, os mais fortes - claro!, fosse essa força de um contra um, ou força de muitos contra um, o que não exigia que, individualmente, esses muitos fossem mais fortes que o adversário... Mas, milênios passados, aprendemos a linguagem, fizemos contas, inventamos outro jeito de viver, trocando, em lugar de exclusivamente roubando e matando - sim, ainda roubamos e matamos, mas digamos que a operação evolutiva (falo em sentido natural) não se completou totalmente.
7. Penso que a própria população do planeta, tornando-se majoritariamente pobre e fraca, mas igualmente em "diálogo" revolucionário com os fortes e ricos, construíram as teses da moral e da ética, que nada mais são do que, postas sobre a mesa de negociação, as reinvidicações dos olhos e dos corpos dos fracos, grito seu, fazendo-se forte pela inumerável quantidade de seus combatentes - também disso tinha ciência Nietzsche (aliás, a necessidade de que os fracos se façam fortes para que a moral e a ética seja levada a sério, para que seus direitos reinvidicados sejam aceitos como tais - pelos ricos e fortes - é uma constrangedora constatação de que a Natureza ainda age em nós: se queremos a justiça, será pela força, ainda que essa força seja concentrada numa maioria fraca, mas uma esmagadora maioria, que, apelando para até a não-violência, torne-se politicamente forte, por meio da pressão internacional - caso de Gandhi?). Não se trata, então, de um fundamento natural, mas de um fundamento histórico e sócio-político, um fundamento fundamentalmente humano, demasiadamente humano, mas, não, por isso, desconsiderável.
8. Sim, é verdade, não há nenhuma culpa ontológica, metafísica, teológica, diante do fato de um rico e forte oprimir um fraco e pobre. Nenhuma - ao menos naqueles termos. Porque há uma culpa: a que o fraco lhe impõe, se lhe impõe, e que, no conjunto dos fracos, torna-se um peso de ferro, um fogo modelador, uma espada afiada, e... revolução! Daí que Nietzsche ter horror à revluão - porque ele quer que a planta se deixe arrancar, a fome do agricultor, e que a plebe se deixe controlar, à vontade do feitor. Uma "chandala", como trata o povo, o proletariado, quer ter voz, isso é um horror!, não é sequer "natural". Talvez, um dia, quando e se for dada voz e linguagem aos animais, também eles façam sua revolução!
9. Curiosamente, vi isso num bando de... hienas. A fêmea alfa era, naquele caso, extremamente forte e cruel. O bando tornava-se, a cada dia, mais fraco. Eram dias de extrema seca em seu território africano, caça escassa, pouca carne, comida quase nenhuma. A alfa tomava para si toda a pouca carne caçada, e o bando tornava-se cada vez mais enfraquecido. S etentavam abocanhar algum pedaço, eram severamente castigados. E nenhuma culpa pesava sobre a fêmea alfa - a Natureza, plácida, apenas, assistia... Um dia, contudo, o bando inteiro atacou a fêmea alfa, tomou-lhe o lugar, pôs uma das irmãs como nova alfa, e a deixou ferida gravemente, expulsa do bando. Semanas depois, a antiga alfa pediu para retornar ao grupo - só, e ferida, morreria. Foi aceita. Mas não mais como alfa. O que me faz considerar que não haja, mesmo, um fundamento metafísico, abaixo de nós, acima de nós, para a moral e a ética - mas que a moral e a ética nasçam da relação entre a subjetividade viva e o ecossistema de competição: fora dessas relações, suprimidas ou a subjetividade viva ou a relação ecossistêmica de competição - também viva! - não faz sentido falar de moral e ética. Mas, nesse contexto, no nosso contexto, faz. E não fazê-lo não se torna necessariamente amoral e a-ético - mas tem suas conseqüências partidário-ideológicas.
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
2 comentários:
Sou arrebatada quando seus textos são sobre Nietzsche.
Delicio-me...
Olá, Débora. Bom ouvir isso. Nietzsche me arrebata, igualmente, porque ele é, para mim, anjo e monstro - ao mesmo tempo, o que me atrai e repulsa, ao mesmo tempo, que me causa orgulho e constrangimento, ao mesmo tempo. Enconro-me em casa, com ele, ao mesmo tempo em que sou totalmente estrangeiro. Sua filosofia, antes que se torne ação política, encaixa-me perfeitamente com a minha - mas depois que ela se transforma em programa político, não tem mais meu apoio. E eu me delicio com isso, porque não é verdade que o que ele vê, o vê por conta de sua opção política: o que ele vê, ele usa para sua opção política, mas eu vejo a mesma coisa que ele, e não caminho pela estrada política que ele caminha. De modo que sinto-me bem. Eis aí alguém por quem faria sentido haver vida eterna, ao menos vida após a morte, porque eu gostaria muito de cumprimentá-lo. Mas temo que isso jamais aconteça, de modo que sorverei todas as gotas possíveis, agora, desse veneno.
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