sexta-feira, 29 de outubro de 2010

(2010/542) De Heráclito a Heidegger - a transformação do contrário


1. Aula de Hermenêutica. Ah, as aulas de Hermenêutica! Só perdem, se perdem, para as aulas de Epistemologia (se bem que também há as de Fenomenologia da Religião!). Mas, alto lá - apenas se forem aulas de Hermenêutica e Epistemologia em "estilo" europeu, o modelo "científico-humanista" clássico - porque, se forem em "estilo" estadunidense, o modeo evangélico e fundamentalista clássico, serão aulas "falsas", ou, para ficar menos pesada a declaração, são outra coisa que não "aulas de Hermenêutica", uma coisa assim parada no tempo, alguma coisa entre um traseiro bem grande sentado na Idade Média e uma cara borrada de maquiagem pseudo-moderna, crente que está abafando, quando, a rigor, leva meio mundo ao fundo de um poço sem fundo. Mas o que é pior: com ares soteriológicos!

2. A Hermenêutica estadunidense, coitada, aquela que se recusa a perspectiva científico-humanista, aquela coptada pelo "clero", escrita em livros de "clero", amarrada às batinas de pastores - sim, batinas, porque pastores evangélicos são tão "católicos romanos" quanto os próprios católicos romanos, só a) não usam batina e b) são eles mesmos os próprios pequenos papas, o que é pior, eu diria, porque um leão, uma víbora qualquer, você mata, e pronto, mas milhares de anófeles, como você faz? Naturalmente que não se vá generalizar: reserve-se uma sala, dois sofás, uma mesinha de centro, um café recém-passado, porque sempre há exceções. Poucas. Mas há.

3. Mas eu falava da(quela) aula de Hermenêutica. Você passa por Schleiermacher, que é o que se pode chamar de "abordagem psicológica da compreensão humana", você avança, passa por Dilthey, que é, agora, sem desconsiderar a abordagem de Schleiermacher, mas incorporando-a, aquilo que se pode classificar como "abordagem histórico-sociológica da compreensão humana", ele, Dilthey, que é o pai delas, as Ciências Humanas, que à época ainda se chamavam Ciências do Espírito. Enquanto Schleiermacher trata a compreensão humana a partir, claro, da mente humana, da "psiquê", dos processos internos do pensamento humano, Dilthey amplia a abordagem para o conjunto das aproximações científico-humanistas ao Homem. O que fica faltando é a "teoria" geral - uma, digamos assim, "filosofia da compreensão humana" (embora já aí presuposta!), ao mesmo tempo, uma nova definição de Homem, cem anos depois de derrubada a duas e vezes e meia milenar definição teológica desse mesmo Homem. Porque é assim: Hermenêutica européia tem a ver com o que é o Homem.

4. Heidegger - eis o cara. O primeiro Heidegger, corrijo depressa. Houve dois Heideggeres dentro de um: o primeiro, que fecha o circuito com Schleiermacher e Dilthey, e outro, que abre um "novo" circuito, que será arrematado por Gadamer. Gosto do primeiro Heidegger. Do segundo, não. Nem de Gadamer. Não gostar não passa disso: não gostar. É que julgo que estão equivocados, ambos, o segundo Heidegger e Gadamer, conquanto tenham à sua frente uma avassaladora platéia (amigos meus contam-se entre seus admiradores) a lhes escutar o discurso. Quanto a mim, ainda prefiro a seqüência Schleiermacher - Dilthey - (primeiro) Heidegger, ou, dito a respeito de suas abordagens científico-humanistas à compreensão humana: abordagem psicológica - abordagem histórico-sociológica - abordagem filosófica.

5. No fundo, no fundo, contudo, Heidegger não vai inventar nada. Vai é desinventar. Anotem isso: Heidegger vai destroçar "impiedosamente" Parmênides e sua "teoria" do Ser. Aqui há algo de relevante a ser analisado. Parmênides é um "filósofo" pré-socrático, logo, é anterior a Platão. O Ocidente está na confluência de duas estradas - Parmênides está na cabeceira de uma delas, digamos, a número 2. Construiu a teoria do Ser que será apreendida nessa porção poente do planeta. Dirá que o Ser é "O Que Sustenta Tudo Que Existe", não sendo sustentado por coisa alguma, senão por si mesmo. O Ser, dirá, é Imóvel, Imutável, Eterno. Só Ele e Um é o Ser - tudo o mais são "entes", sujeitos ao Ser, determinados por Ele. Nas escolas, nos dizem tratar-se de um filósofo - finjamos que nos ensinaram bem... Mas, a rigor, Parmêides é teólogo, como o foram todos os "filósofos" daquela época.

6. O Ser de Parmêides, pois, está em todo lugar - logo, não há para onde se mexer, logo, é imóvel. O Ser é Onipresente. O Ser de Parmênides é imutável, porque ele é a perfeição, e, sendo-a, não há como aperfeiçoar-se, nem tampouco decair em imperfeições circunstanciais. O Ser é Imutável - eternamente igual a ele mesmo. O Ser de Parmenides é eterno, porque, sendo o que e quem é, não pode ter sido criado, porque, se o fosse, não seria o Ser de Parmênides, e, além disso, sendo o que e quem é, não poderá ser descriado, um dia, seja amanhã, seja daqui a bilhões de anos, de modo que é eterno. Imóvel, Imútável, Eterno. Termos familiares? Não se trata, contudo - ainda! -, de "Deus". Mas chegaremos lá.

7. A meio caminho disso, Platão vai pegar o conceito de Ser e aplicá-lo à Verdade e ao Bem, que habita o Mundo Espiritual das Idéias. Os entes, ou seja, tudo o mais, é "maya", ilusão, imperfeição material (um braço como o budismo já chegara à Grécia!). É a Idéia Verdadeira e Boa que/quem determina tudo, mas as coisas determinadas pela Idéia Verdadeira e Boa não chegam à sua perfeição - porque vieram a existir materialmente, afundam no lodo da matéria, na fossa do corpo, enquanto ela, a Idéia Imóvel, Eterna, Imutável, a Idéia-Ser, a parmenidesiano-platônica Idéia não, Ela é o que é, porque é quem é.

8. Agora, a outra estrada, nesse caso, a número 1, do Ocidente: Israel e Judá - a rigor, mais Judá do que Israel, porque o que temos de Israel é muito mais Judá do que o próprio povo do Norte. Aí, na mesma medida dos povos da época e do lugar, na exata medida de cananeus, assírios, babilônicos, persas, tudo é mitológico e mítico. Yahweh, mesmo depois de arrancado de seus amigos deuses, embora deixado só, é, ainda, limitado: mora num templo no meio das águas superiores, vejam vocês! Mesmo no período neotestamentário, as águas ainda estão lá, é o que nos faz crer Pedro. Nada mais abissalmente diferente do que o Antigo Testamento, semítico, próximo-oriental, concreto, do que a filosofia grega e as concepções de Parmênides e Platão. E mesmo o Novo, quando já o mundo grego começara a engolir o mundo judaico, aí ainda estamos no meio das costuras, flagramos a simbiose em pleno processo - mas ainda assim estamos no mundo judeu, mais do que no grego (é apenas nossa lente, nossos olhos, agora, mais gregos do que judaicos, que fazem do NT alguma coisa mais grega do que judaica, mas, historicamente, isso é um senhor equívoco - para o que basta assistir à cena de um apoplético Paulo diante de uma igreja que se recusa a aceitar a ressurreição... coisa de corpo...).

9. No entanto... Judeus helenizados usaram o termo grego "theos" para referir-se ao hebraico "elohim" e, dado o "tabu" do pronunciamento do nome divino, Yahweh, também a este se aplicou o termo grego, de modo que assim cruzaram, enxertaram, dois conceitos até então incomunicáveis. Nos ambiente filosóficos, helênicos, já começara o processo de fusão entre o conceito de Ser, de Parmênides e Platão, e o termo grego "theos", das Escrituras Sagradas da tradição grega. Desse modo, uma vez que o termo grego "theos" passou a ser usado para referência a "elohim" e a "Yahweh", deu-se, a pouco e pouco, o fenômeno de incorporaçã do conceito filosófico do Ser de Parmêides ao Yahweh israelita/judaico, de modo que assim inventaram um [novo] [outro] "Deus", fusão de "Ser", de "Theos", de "Yahweh", ao mesmo tempo nenhum deles, todos eles, cada um deles. A mitologia e a mítica com que Yahweh fora, um dia, vestido, desaparece - cpmo que por encanto. Do meio da bruma helênica, ascende à Vida, um Deus. O Ser e Yahweh fundem-se - são fundidos - e eis a criação máxima do Cristianismo.

10. No fundo, Yahweh nunca fora nada do que se atribui a (esse) "Deus". "Deus" é a simbiose idealista entre as concepções históricas de gregos - da estrada helênica que liga Parmênides a Platão - com o fundamento alegórico da tradição judaica. Que não se tratava da mesma coisa, soube-o Marcião assim que se deu conta do que se passava diante de seus olhos e ouvidos. Nós, não. Nós recebemos a coisa pronta - e o bom cristão deve calar-se diante do rei nu, ou pagar o preço da curiosidade e da língua de trapo. Essa história toda é como saia de menina - a vontade de levantar é enorme, mas, se você levanta, brigam com você. E, no entanto, o que está debaixo grita por sua atenção - o tempo todo...

11. O Ser-Deus - essa idéia filosófica e alegoricamente biblica - a mágica de Justino! - assumiu a retórica (e a política!) do Ocidente. Tudo, todos, cada coisa e(m) seu conjunto, são determinados pelo Ser: só há vida e liberdade na aparência: sob tudo e sobre todos, o Ser-Deus determina, "calvinisticamente", cada célula, cada destino. Tudo não passa de uma grande cena de teatro encenado, com marionetes a fazer que fazem alguma coisa, quando não fazem nada, é Ele o único ator/diretor... O show de Truman!...

12. Isso vai durar, depois de tornado cristão, dois mil anos. Enquanto teoria, vai acabar aos pés de Heidegger (o primeiro, que o segundo voltará atrás). Mas eu dizia que Heidegger não inventou nada. De fato. Na mesma época, pouco antes, pouco depois de Parmênides, não se sabe ao certo, houve um homem. Seu nome era Heráclito. Ou Heráclito foi um contra, um anti-Parmênides, ou Parmênides foi um contra, um anti-Heráclito: porque um fala exatamente o inverso, o contrário do outro. Para Herácito, não há nada imutável - tudo muda: nenhum homem se banha duas vezes no mesmo rio... O Ser não tem nada de parmenidesiano - o Ser é Mudança: o Ser é efêmero, o Ser é pirilampo, o Ser é evento... O Ser não é, mas vai sendo, vai-se fazendo, à medida que se faz, como a caminhada de Pessoa...

13. Pois bem, depois de Schleiermacher e de Dilthey construírem a tese do Homem como animal hermenêutico, Heidegger abandona quase três mil anos de Ser, retorna a Heráclito, e vai contra-apresentar o "Dasein", não mais o "Ser", mas o "Ser-aí", uma concepção da vida como não determinada, como não-destino, como abertura, como inacabamento sempre inacabado, porque sem "acabamento". Para esse Heidegger, o primeiro, traído pelo segundo, cada homem é um projeto aberto, sem "planta", e sua vida, um livro em branco, sem script, porque não há nada acima, abaixo, ao lado dele, que o determine teatralmente, cenicamente, dissimuladamente, sobredeterminantemente. O Ser, aquele, pétreo, o Ser, aquele, monolítico, o Ser, aquele, tudo-determinante, dissolve-se - a grande geleira teológica desfaz-se sob o sol do dia a dia... E quem duvidaria? Com a derrocada da Teocracia, com a Advento da República, esperar-se-ia outro Messias?

14. Mas calma! Pode-se até pensar uma "divindade", a partir de Heidegger. Pode-se, sim. A "teoria" do ser-aí não é necessariamente atéia. Pode-se pensar uma divindade acima de tudo isso. Todavia, Ela aguarda o "lance" feito aos dez elevado a menos um bilhão de segundo antes do Big Bang, sim, espera - ainda -, porque, nesse caso, os dados ainda estariam rolando sobre a mesa de 14 bilhões de anos. Uma divindade à moda de Parmênides escreveu um livro em seu PC eterno e o imprimiu, e a nossa vida é a leitura desse livro, cujo final já se sabe (Cânones de Dorth!). Uma divindade à moda de Heráclito, logo, de Heidegger, o primeiro, porque o segundo, ou enfiou-se debaixo da cama, amedrontado do monstro que soltou, ou foi flagrado em entrevista com o Estado Maior nazista, de modo que homens não-determinados não é uma boa mercadoria a vender a uma Alemanha dos quarenta, uma divindade, então, à moda do primeiro Heidegger não escreveu um livro, mas jogou dados sobre uma mesa escura e fria, uma mesa de matéria negra, e espera o seu resultado, do qual ele não tem, ainda, a menor idéia. Se desejarmos a manutenção da metáfora editorial, com a qual se fechará o ensaio, a divindade de Heráclito, logo, a de Heidgger, o primeiro, imprimiu um livro em branco, ao qual ainda se podem acrescentar tantas quantas sejam as folhas - em branco - que aí caibam...

15. Com Parmênides, com Platão, com o Cristianismo, os dados estão viciados. Não importa o que se faça, quem faça, por que faça, quando faça, quanto faça, não importa absolutamente nada: o resultado dos dados será sempre aquele eternamente estabelecido pelos "pesos" divinos, os chumbos de eleição, as medidas arbitrárias de Quem Pode. A banca vencerá, não importa. Fichas azuis, amarelas, verdes, vermelhas, de cem e de mil, homens e mulheres são apenas isso - fichas numa mesa viciada, nas mãos de um crupiê que escolhe as cartas, bem como a quem dar cada qual, no cassino de um bookmaker profissional. Com Heráclito, com Heidegger, o primeiro!, apenas o primeiro!, os dados são "éticos", digamos assim, foram calibrados pelo INMETRO. Lançados pelas mãos divinas - façamos Teologia, permitamo-nos! -, os dados rolam, livres, sobre a História: cada tombo do cubo é estabelecido pelo seu movimento, pela sua mudança - os destinos não estão traçados, mas traçam-se, à medida que o dado rola.

16. Temos, meus amigos, diante de nós, duas boas teorias. Cada qual tem lá seus atrativos. Parmênides dá as cartas há dois mil e setecentos, oitocentos anos, algo assim. A julgar pela reação, pela contra-reação, do próprio Heidegger, apostatando de si mesmo, de sua loucura iconoclasta, e pelo esforço de Gadamer, o novo administrador do cemitério, talvez continue a mandar e a desmandar, ainda que disfarçadamente, agora - como sabemos, todas as Teologias (e Parmênides é, sobretudo, teólogo!), são projeções humanas, de modo que essa teoria parmenidesiana é o reflexo do poder que, decididamente, não quer mudanças: é de política que se trata, sempre, nada mais do que de política. Com Heráclito, acho que as coisas se dão de modo razoavelmente diferente: a brisa volta a soprar. O que é assustador, eu reconheço. É que, modernos, nos flagramos, contudo, retornando às florestas selvagens da Aurora - abandonados à nossa própria sorte... sob os olhos curiosos de uma divindade atenta e curiosa... Não me envergonho: gosto de pensar em Deus a torcer para que os dados, afinal, dêem um bom resultado... E que cada um decida se ele não interfere nos dados porque não quer, ou porque... não pode...

17. Acho que é por isso que a vertente estadunidense da Hermenêutica ainda continua chamando de Hermenûtica a interpretação dogmática e confessonal da Bíblia nos livros que imprime e vende - porque é Parmêides o dono das editoras... E aí, meus amigos, os dados não podem sequer rolar.


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

2 comentários:

Elias Aguiar disse...

Bravo! :)

Al disse...

Síntese de grande utilidade...mapa de incursões...

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