domingo, 17 de outubro de 2010

(2010/510) Da armadilha que a religião preparou para si mesma - inspirações de revoadas de tanajura...


1. No título, o termo religião pode conter uma amplitude exagerada. Quanto ao que tenho a dizer, não se trata de toda e qualquer religião - conquanto todas possam armar a mesma armadilha para si mesmas. Mas tenho em mira, aqui, aquelas religiões que se deixaram modernizar, desde, talvez, se não erro a data, uns dois mil, dois mil e quinhentos anos. Refiro-me às religiões que saíram da dimensão da norma inquestionável, e entraram no âmbito da argumentação filosófica, da fundamentação racionalizada, da justificativa sócio-política.

2. É bastante provável que esse fenômeno seja tributário do início das grandes civilizações, dos grandes impérios, primeiro, próximo-ocidentais, e, desde aí, ocidentais, se bem que não tenha passado inofensivamente pelas regiões mais ao Nascente. Parece-me correto argumentar que o fato de inúmeras populações e culturas se reunirem muito artificialmente em uma única "nação" - a rigor, um único Império, jamais, é certo, verdadeiramente uno e uniforme, acrescido do zelo teológico, do afã escatológico persa-judaico -, tenha resultado no enfrentamento público de religiões que, antes, operavam e imperavam regionalmente, a rigor, sem maiores complicações do que os enfrentamentos internos.

3. Um exemplo disso é Justino e suas Apologias. É exatamente disso que estou falando - ter de vender seu peixe, ter de construir argumentações, ter de criar justificativas, convencimentos públicos e privados, primeiro, para ter o direito a manter-se tal qual se é, e, mais tarde, para querer fazer e fazer de todos um igual a si mesmo - a apologia é a mãe da catequese... Primeiro, a defesa, depois, o ataque!

4. Um fator que considero fundamental é a moralização da teologia. Is 45,1-7 parece representar um brado de alerta, quem sabe?... O fato é que os persas moralizaram a teologia - fala-se, quanto a eles, inclusive de um monoteismo... ético ([Eliade os apresenta assim, por exemplo, em seu Dicionário das Religiões] se é que pode haver ética no monoteísmo...). O problema da moralização da religião é que Deus passa ser forçado a agir, digamos assim, segundo tratados internacionais de Direitos Humanos. Se você, por exemplo, só consegue imaginar um "deus" bom, e disso estou falando quando se trata de "Deus", e não dos demônios, porque essa é uma outra história, que precisa ser enfrentada em outra ocasião, mas se você pensa com naturalidade o caráter "bom" de Deus, então, anote aí, primeiro, que você está enfiado até o pescoço nesse processo civilizatório de moralização da religião e, segundo, no fundo, é você quem determina o que Deus pode e não pode fazer, porque, a rigor, a moral, quem a determina somos nós, humanos. A moral é maior do que Deus, que a ela deve submeter-se, é menor do que os humanos, qe estabelecem seus princípios e vigências, de modo que a moralização de Deus faz de Deus algo menor do que os humanos.

5. Até o período persa (século VI e V a.C), os deuses eram amorais. Não, nao eram imorais, porque a moral não se aplicava a eles - ainda. Tornaram-se imorais - por exemplo, o Deus da Colonização das Américas, o Deus da Inquisição, o Deus cowboy do Oeste estadunidense, todos esses - no fundo, o mesmo - são deuses imorais, profundamente imorais. Mas os deuses do passado, pré-persas, não, eles eram simplesmente amorais, porque estavam acima dessas questões, ora fazendo o que pode ser considerado bom por nós, ora fazendo o que podemos considerar mau, mas, a rigor, fazendo o que lhes dava na telha, sem haver quem os advertisse.

6. Em termos feuerbachianos - já que toda teologia é projeção humana -, essa prática da amoralidade divina decorre de uma suspensão da moralidade do rei. O rei faz o que lhe dá na telha, como Davi, por exemplo, que, se quer deitar-se com a mulher, manda buscá-la, se a engravida, manda que o marido faça as honras e assuma o papel de corno útil, e, se esse marido é por demais cioso das leis da guerra, e deitar-se com a mulher é coisa que nao fará, é, então, mandar que o coloquem ali, naquela posição xis, na frente de batalha, que ali não dura meia hora, dito e feito. O rei é assim - quer, faz.

7. Os deuses eram assim também. Até que a Pérsia ensinou-os a separar as atitudes: boas nessa caixa, más, naquela. Pobre Yahweh - ali ele foi domesticado, como um lobo selvagem, e, agora, come na mesa dos comensais de Jerusalém, de Roma, de Wittenberg. Bom menino, Yahweh. Nunca mais fará nada de mau - porque, está grafado inclusive no Livro, "Deus é Amor". Pronto. CPF e DNA.

8. O problema é que essa definição reduz Deus ao amor. Se Deus é amor, o que importa é o amor. Sem a palavra amor, a palavra Deus torna-se vazia e sem sentido - um não-deus. O amor passa a ser critério. O Amor em si passa a ser a própria coisa sagrada. Assim, tudo o mais é relativo, não-necessariamente-divino, digamos, mais ou menos como se pode ler lá em Jeremias 7, uma bela cena ilustrativa dessa armadilha. O critério já vai sendo posto em prática e conceito até na dita Primeira Epístola de João: quem diz que ama a Deus, e aborrece o irmão, mente, porque não se pode amar a Deus e aborrecer o irmão. Percebem a armadilha? O critério trava a dimensão divina de Deus, e faz dele um fantoche controlável. Sim, os deuses sempre foram controláveis, sempre houve cordas amarradas em seus pés e mãos, e mãos hábeis a manejar tais cordas, mas a moralização de Deus deu a todos os homens um critério democrático de controle - é a universalização sacerdotal antes da declaração do sacerdócio universal luterano... Doravante, Deus está onde o critério que estabelecemos diz que está: não há amor aqui?, Deus não está aqui, porque Deus é amor. Não é que homens racham igrejas... por meio de... Deus? Sim, Deus tornou-se um instrumento utilizável por qualquer um (e não apenas pelas elites e pelos reis!), e talvez Nietzsche tenha alguma razão em perceber a moral dos escravos no judaísmo e no cristianismo antigos, mas, quem sabe, as razões históricas para isso tenham sido outras que aquelas que ele mesmo arriscava considerar, ele, um aristocrata indomável. Deus, instrumento pop...

9. E é? Se é, não importa, então, onde esteja o Livro, a fé, o padre, o coroinha, o diácono, o pastor, o púlpito, o templo, o pão, o vinho - nada disso é relevante. O que é relevante é a única definição, o único critério: o Amor. E não sou eu a dizê-lo, apenas faço as contas, se as faço certas. Onde quer que o Amor esteja, aí está Deus, ou, dito de outro modo, aí pusemos Deus. Onde? Não importa: no conselho de ateus, por exemplo, na prática da caridade de freiras da Índia e da Bahia, nos adeptos de qualquer culto - ou não! - com a condição de que... pratiquem o amor. E não estou aqui defendendo a idéia de que Deus seja amor - estou apontando o fato, ou nos termos desse ensaio - a armadilha!

10. De um lado, Deus estará onde estiver o Amor, não importa onde isso seja. De outro lado, uma Igreja, sentada sobre ouro e poder, pode, contudo, passar por falsa representante de Quem diz pregar, uma vez que, se assim for, não amando de fato e verdadeiramente, antes, aborrecendo o irmão, ela, então, cinicamente, mente. Não importa outra coisa, nos termos do critéro, a não ser a caridade, de modo que a Declaração Universal dos Direitos do Homem é mesmo a Bíblia da Teologia do século XIX - europeu, que seja, uma época em que se tentou reduzir a religião ao seu critério racionalizador, a partir das justificativas históricas da Igreja.

11. Não se assuste, caro leitor. A questão não é nova. Um mártir cristão da Alemanha nazista, Dietrich Bonhoeffer, preparava, mas mataram-no na prisão, uma talvez nova Teologia, e dizia que deveria ser parido um Cristianismo não-religioso para o homem em estado adulto. Obsderve-se - Cristianismo não-religioso, de um lado, e homem em estado adulto, de outro. Primeiro, porque o critério civilizatório a que Deus e a religião foram submetidos pô-los em curso de extinção (que Nietzsche só fez anunciar, por isso o odeiam, como ao que anuncia que acabou a festa, e a moçada alucinada ainda quer que a música role) - no formato pré-existente, pôs em marcha uma transformação de Deus e uma transformação da religião, que, se não inexoráveis absolutamente, são inexoráveis enquanto forem mantidos os trilhos sobre os quais elas correm. Morin, admirável, por exemplo, propos uma nova fé como par de uma nova não-fé, um novo teísmo para um novo ateísmo, ambos cientes do que ambos são - coisas de uma humanidade em estado infantil, ainda... e, nesse sentido, insuperável senão em seus próprios termos.

12. Paro por aqui. Nesses dias de instrumentalização da religião no embate político-presidencial, vem à tona o obscurantismo da matriz religiosa brasileira, a aviltação da racionalidade, o estado primitivo dos espíritos e das pulsões do sagrado que nos anima a nós, brasileiros, o anacronismo das relações intra e inter-religiosas, a confusão de plataformas teóricas e políticas, a imbricação de placas tectônicas incompatíveis. Porque, é irônico, mas, ao mesmo tempo, perigoso, perceber que a religião cristã participou ativamente da moralização da religião e da redução de Deus a mero critério sócio-político, mas a sua profundidade teológica é tão pouca, mas tão pouca, que não se deu conta disso, e deixa-se levar pelo seu fantoche para fazer, como que por meio dele, as loucuras da mente patológica que a religião pode produzir, e, de fato, produz.

13. Há cura. Mas não breve. O futuro é incerto, como o vôo do macho da saúva, nascido para voar e fecundar a fêmea, fecundá-la em pleno vôo e cair em morte, porque para nada mais serve e servirá. Uma vida inteira por um único vôo - e ele é tão incerto... Também nosso futuro. Estamos em pleno vôo - mas não há garantias de fecundação em curso... Ao menos me agrada não ter nascido um macho de íçá, e decidir eu mesmo o vôo e a hora...


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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