1. Dizê-lo assim à moda metafórica, mas, no fundo, nem tão metafórica assim. O que estou a querer dizer descreve como os homens crentes, modernos, ofertam a Deus um manjar de dissimulações. Coisa terrível, decerto - e como sofrem, é verdade! Ah, ter que fazer que crê e dizer que crê, e esconder no fundo do intestino grosso, a ver, quem sabe?, de si mesmo, a própria (des)crença, as coisas mais iconoclastas... Que demônios não se forjam nessas tripas!
2. Mas a etiqueta crente impõe um jeito de andar, um jeito de falar, um jeito de pensar!, justamente aí, no pensar, onde se esconde a maior das víboras, porque o crente finge que pensa o que pensa, e trai-se a si mesmo, empurrado pela multidão, com medo de seu próprio pensamento, com pavor de sua própria descrença. É quando está reunido que, então, a sua arte - de teatro! - se ostenta. É sua muleta e sua faca. É tanto uma defesa, um apoio, quanto um ataque, defender-se da desrazão vociferante, da intolerância, do preconceito, fazendo-se, então, como que um "natural", como que um aderido à fé de carteirinha, pré-sala das apostilas de concílio, e atacar a todo e qualquer que o olhe, porque impõem a ele essa dor de ser quem não é, de fazer-se outro, de mentir, primeiro para si, depois, para todos...
3. E, sobretudo, essa mentira infame, de mentir para Deus, de cinicamente portar-se à mesa, dissimulado, sob os olhares do Pai e, nem assim, disso dar-se conta. Ah, essa febre ortodoxa é uma masmorra miserável, a fazer agrilhoados todos os que incautamente se aproximam. O teatro irônico e triste das encenações litúrgicas... O ventre do crente é o cadinho mágico das tramutações, onde Amor transforma-se em ira profunda, porque o Amor está inexoravelmente sepultado nos fundamentos da Verdade, e ela, a Verdade, queridos, tem sede de sangue... Toda essa cínica encenação é um tributo, pois, à Verdade, deusa, celebrado liturgicamente nas exéquias do Amor, enterrado vivo, Amor assim defunto, mortalha que se carrega nas palavras, e só nelas. Tal magia, meus amigos, controla o crente, quer ele o queira ou não, quer ele o saiba ou não, e, na sua mentira delirante, faz ser Deus esse demônio intestino... E, coitado, em seu desespero de causa, há algo errado, ele sabe, olha ao redor, a ver se alguém sente a mesma dor indescritível... E, ah, teatro dos horrores, vê apenas... atores, cada qual fingindo ser louvor a dor que na própria carne ele carrega, de modo que a dissimulação de um é o cadafalso do outro.
4. Esses pensamentos todos me vieram à mente, na verdade, me voltaram à mente, momentos atrás, quando relia, folheando-o, o Crepúsculo dos ìdolos, naquela parte ali, mais final, onde leio:
"Com o que é que as pessoas se comprometem hoje em dia? Quando se porta uma conseqüência. Quando se caminha em linha reta. Quando suas palavras possuem menos do que cinco sentidos. Quando se é genuíno... Eu temo enormemente que o homem moderno seja muito acomodado para possuir certos vicios que estes venham então a extinguir completamente. Todo o mal, que é condicionado pela vontade forte - e talvez não haja nada de mal onde falta a força de vontade -, degenera-se em virtude no interior de nossa atmosfera tépida... Os menos dissimulados que conheci imitavam a dissimulação: eles eram, como hoje em dia o são um a cada dez homens, atores" (Nietzsche, Crepúsculo dos Ídolos, Relume Dumará, p. 87).
5. A fé transforma-se em circo - e a magia da transformação é o medo de ser pego na própria descrença de toda essa longa encenação de milênios. Mas a encenação é tão sofisticada, e tem tantos atos, que é preciso muita força de vontade, muita consistência interior, para ousar pôr o dedo. Todavia, atores são, por natureza, assim: vazios - para que dentro lhes caibam qualquer simulacro de personagem... E quanto mais choram, melhores profissionais se tornam...
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
PS. a alma da atuação tem origens profundamente piedosas, ao menos, registre-se, a dissimulação santa: é a pedagogia do fazer-se judeu para o judeu, grego para o grego... Logo, não se é coisa alguma, realmente (não se anda reto, não se é genuíno, para usar termos recentes) - apenas um visgo modelável, uma resina de formatação, adaptável à fagocitose catequética da moda.
2. Mas a etiqueta crente impõe um jeito de andar, um jeito de falar, um jeito de pensar!, justamente aí, no pensar, onde se esconde a maior das víboras, porque o crente finge que pensa o que pensa, e trai-se a si mesmo, empurrado pela multidão, com medo de seu próprio pensamento, com pavor de sua própria descrença. É quando está reunido que, então, a sua arte - de teatro! - se ostenta. É sua muleta e sua faca. É tanto uma defesa, um apoio, quanto um ataque, defender-se da desrazão vociferante, da intolerância, do preconceito, fazendo-se, então, como que um "natural", como que um aderido à fé de carteirinha, pré-sala das apostilas de concílio, e atacar a todo e qualquer que o olhe, porque impõem a ele essa dor de ser quem não é, de fazer-se outro, de mentir, primeiro para si, depois, para todos...
3. E, sobretudo, essa mentira infame, de mentir para Deus, de cinicamente portar-se à mesa, dissimulado, sob os olhares do Pai e, nem assim, disso dar-se conta. Ah, essa febre ortodoxa é uma masmorra miserável, a fazer agrilhoados todos os que incautamente se aproximam. O teatro irônico e triste das encenações litúrgicas... O ventre do crente é o cadinho mágico das tramutações, onde Amor transforma-se em ira profunda, porque o Amor está inexoravelmente sepultado nos fundamentos da Verdade, e ela, a Verdade, queridos, tem sede de sangue... Toda essa cínica encenação é um tributo, pois, à Verdade, deusa, celebrado liturgicamente nas exéquias do Amor, enterrado vivo, Amor assim defunto, mortalha que se carrega nas palavras, e só nelas. Tal magia, meus amigos, controla o crente, quer ele o queira ou não, quer ele o saiba ou não, e, na sua mentira delirante, faz ser Deus esse demônio intestino... E, coitado, em seu desespero de causa, há algo errado, ele sabe, olha ao redor, a ver se alguém sente a mesma dor indescritível... E, ah, teatro dos horrores, vê apenas... atores, cada qual fingindo ser louvor a dor que na própria carne ele carrega, de modo que a dissimulação de um é o cadafalso do outro.
4. Esses pensamentos todos me vieram à mente, na verdade, me voltaram à mente, momentos atrás, quando relia, folheando-o, o Crepúsculo dos ìdolos, naquela parte ali, mais final, onde leio:
"Com o que é que as pessoas se comprometem hoje em dia? Quando se porta uma conseqüência. Quando se caminha em linha reta. Quando suas palavras possuem menos do que cinco sentidos. Quando se é genuíno... Eu temo enormemente que o homem moderno seja muito acomodado para possuir certos vicios que estes venham então a extinguir completamente. Todo o mal, que é condicionado pela vontade forte - e talvez não haja nada de mal onde falta a força de vontade -, degenera-se em virtude no interior de nossa atmosfera tépida... Os menos dissimulados que conheci imitavam a dissimulação: eles eram, como hoje em dia o são um a cada dez homens, atores" (Nietzsche, Crepúsculo dos Ídolos, Relume Dumará, p. 87).
5. A fé transforma-se em circo - e a magia da transformação é o medo de ser pego na própria descrença de toda essa longa encenação de milênios. Mas a encenação é tão sofisticada, e tem tantos atos, que é preciso muita força de vontade, muita consistência interior, para ousar pôr o dedo. Todavia, atores são, por natureza, assim: vazios - para que dentro lhes caibam qualquer simulacro de personagem... E quanto mais choram, melhores profissionais se tornam...
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
PS. a alma da atuação tem origens profundamente piedosas, ao menos, registre-se, a dissimulação santa: é a pedagogia do fazer-se judeu para o judeu, grego para o grego... Logo, não se é coisa alguma, realmente (não se anda reto, não se é genuíno, para usar termos recentes) - apenas um visgo modelável, uma resina de formatação, adaptável à fagocitose catequética da moda.
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