sábado, 16 de outubro de 2010

(2010/502) Falta em mim...


1. Deixem-me dizer-lhes o que falta em mim: o desejo, a vontade, a vocação... para mudar o mundo. Penso que um autêntico Brancaleone tem, antes de tudo, essa pulsão prostática: vencer a batalha contra o mundo, transformá-lo, salvá-lo. Não tenho isso. Do Cristo não tenho essa paixão... Se não me crêem, vão morrer descrentes, que não hei de me esforçar para provar coisa alguma nesse terreno.

2. Diria que um bom gramsciano, com quem concordo, mas de cuja estratégia não comungo programaticamente, deveria medir até as palavras, dizer apenas o que convém, porque isso é produtivo, politicamente eficiente, como bem me aconselhou um professor, há anos, não escrevas, Osvaldo, cala-te, e prolongarás sua vida sobre a terra... O político tem em vista o futuro que quer para si e para seu mundo, e, então, dá passos, um a um, na direção de construir aquela realidade. Terá, então, de transformar os outros, educá-los, dar seu jeito. É um escultor de mundos, um plasmador de sociedades, um modelador de relações.

3. Não sou nada disso. O que eu faço é, simplesmente, vomitar o que penso. Antes disso, quero viver e dar pão à minha família. Ponto. Nada mais me interessa, conquanto haja em mim uma pulsão de dizer, de vomitar, de arrotar, de defecar, de urinar, de ejacular, de pôr para fora as emulsões - todas - que o corpo produz. As coisas que digo são o que eu sou, e as digo como quem respira. Não escrevo nem digo o que digo e escrevo como programa, como projeto, como objetivo. Escrevo e digo como quem come, bebe, sorve o ar e o cheiro fértil da primavera.

4. Sei lá se isso é bom ou ruim. Um marxista diria que sou burguês - às favas, meu bom marxista!, arranja para ti uma boa marxista (ou uma marxista boa), e ama-a! Um evangélico (e um bom católico!), ah, e não são poucos, me chamarão herege - olha meu semblante de preocupação... Não agradarei a muitos. Paciência. Não os quero ferir. Não ajo para ferir quem quer que seja. Mas é como nossas fezes, meus amigos, necessárias, boas para a nossa própria saúde, mas causam problemas sanitários - que se podem resolver, quando se quer. Elas precisam sair!, se me entendem. O que não posso, meus caros, o que não é possível para mim, é viver em estado de prisão de ventre...

5. Sei que a metáfora que emprego permite que meus "adversários" usem meu próprio texto para rirem de mim, como a dizer que o que eu escrevo e digo é como fezes - merda pura... Mas uso a metáfora também para dizer que o tratamento das fezes, por nós, com desdém, com menoscabo, com desvalor e nojo, só revela a distância que temos de nós mesmos, a rejeição que temos de nós mesmos, o rancor do corpo que herdamos de dois mil anos de história. Pobres homens nos tornamos! Daí o teatro que é a vida - mormente a religiosa, atores, meus amigos, atores, e péssimos! Mas é que a platéia é pior ainda...

6. Revelo-me, pois, como quem escreve, como quem transpira, como quem urina e defeca - é meu corpo, meu império, minha vida - sou eu! E as idéias, arranco-as do mundo, como o ar, o cheiro de hormônio, a luz. Escrevendo, vivo. Nada mais do que isso. E é por isso que não posso negar-me esse direito...


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

PS. um psicanalista (e um crítico!) está (estão!) para um técnico laboratorista, da mesma forma como as fezes estão para os discursos: um e outro analisam seu material colhido (a diferença é que você está dispensado de colher seu material na frente do laboratorista!), e procuram ali, não o trivial, mas o corpo estranho... O homem é assim: por cima e por baixo saem-lhe coisas suas, tratadas pelos processos corporais mais íntimos.

Um comentário:

Unknown disse...

MA-RA-VI-LHO-SO!!!
Louco gostoso.
Bel

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