domingo, 3 de outubro de 2010

(2010/477) Não sei se concordo com Paul Ricoeur sobre a "peleja" da crítica contra a hermenêutica e da hermenêutica contra a crítica


1. Minha docência de Hermenêutica, na Faculdade Batista do Rio de Janeiro, foi interrompida. Mas eu não leciono Hermenêutica por profissão, conquanto lecione Hermenêutica também por profissão. Leciono por uma questão existencial - Hermenêutica é a minha Esfinge. Não acho que haja outro problema teórico - no campo das Humanas - mais urgente do que esse. E, por isso, enfronho-me nas reflexões da cátedra e da leitura.

2. Agora mesmo, volto ao artigo de Paul Ricouer, Crítica das Ideologias, onde perfilam-se os heróis da Hermenûtica, desde Schleiermacher até Gadamer, postos ao lado dos heríois da crítica, entre eles, Habermas. No final do texto, Paul Ricouer faz uma observação que me desconcerta, e a respeito da qual não me encontro bem à vontade. Ei-la:

Com essa antítese aparente, atingimos o mais vivo e talvez o que há de mais vão do debate. Porque, afinal de contas, dirá o hermeneuta: de onde vocês falam quando recorrem à Selbstreflexion, senão desse lugar que vocês mesmos denunciaram como sendo um não-lugar, o não-lugar do sujeito transcendetal! É do fundo de uma tradição que vocês falam. Talvez essa tradição não seja a mesma que a de Gadamer. Talvez seja justamente a da Aufklärung, enquanto que a de Gadamer seria a do Romantismo. Mas ainda é uma tradição, a tradição da emancipação, mais que a tradição da rememoração. A crítica também é uma tradição. Diria mesmo que ela penetra na mais impressionante tradição, a dos atos libertáros, a do Êxodo e da Ressurreição. Talvez não houvesse mais interesse pela emancipação, mas antecipação da libertação, se fosse apagada do gênero humano a memória do Êxodo, a memória da Ressurreição (Paul Ricouer, Interpretação e Ideologias, Francisco Alves, p. 145).

3. Tenho agudo interesse no enfrentamento entre Iluminismo e Romantismo. Concordaria com a declaração de que a trajetória percorrida pela Hermenêutica nasce dentro do Romantismo, e que, por essa via, poder-se-ia vincular Gadamer ao Romantismo. Igualmente a crítica nascerá naquele período, se quisermos ir pelo menos até Marx. Todavia, eis o ponto, não se trata mais da mesma coisa, quando falamos de Hermenêutica em Schleiermacher e em Gadamer, de modo que reduzir a Hermenêutica a uma definição gadameriana e, assim, reduzir a isso o Romantismo, me parece problemático.

[até o primeiro Heidegger, a Hermenêutica é uma condição humana - do segundo Heidegger a Gadamer, ela transforma-se em outra coisa: numa senhora que tem coias a dizer! O movimento me lembra a crítica liberal aos fundamentos do Cristianismo: Paulo não "segue" Jesus - apropria-se dele...]

4. Ora, há muito mais proximidade entre a crítica e Schleiermacher, pai da Hermenêutica moderna, do que entre Schleiermacher e Gadamer. Gadamer, arrisco dizer, rompe com Schleiermacher, ao passo que a crítica, não de todo. De Schleiermacher a Dilthey, e mesmo até o primero Heidegger, o esforço e o vetor da trajetória é o mesmo - revelar os fundamentos da vida humana: o homem, de modo que se chega ao fundo da solidão da existência (não há mais como avançar, depois de Heidegger, o primeiro).

5. Todavia, o segundo Heidegger apostata do primeiro, e desvia a trajetória para outro mundo, subsumindo o homem hermenêutico que definira a uma quase-deusa Linguagem. Por sua vez, seguindo-lhe o movimento, Gadamer vai tornar mais concreta: encarnar (!) a deusa na Tradição, e, pronto, eis aí o gesto prestidigitador... Não estamos aqui diante do mesmo movimento de "encarnar" Deus em Jesus, e, em lugar de dar àquele a dimensão humana, transformar este num "deus"? Não se cama a isso... cooptação?

6. Eis minha percepção desses fatos: a) o Iluminismo constitui uma lufada de independência e autonomia contra a Teologia e a Política (aleluia!), mas encontra-se equivocado sobre a condição da razão, que é deificada e apreendida como o era o próprio Deus. É de tdo compreensível o caso, uma vez que somente um Deus para destronar outro - assim se pensava... No fundo, o Iluminismo leva a termo o movimento de autonomização e atomização do Protestantismo - é seu filho e parto. Mas o faz pelo modo cristão-platônico de pensar uma razão eterna e absoluta, funcionando sob a crosta da carne humana. O Iluminismo é a Teologia dessacralizada e a divinização do homem, deus encarnado. Dessa emancipaão, dessa ousadia, dessa coragem, compartilho...

7. Mas os fundamentos filosóficos e antropológicos estavam errados, porque o gesto fundador da emancipação não tinha instrumentos adequados para se materializar, e fez-se a partir dos fundamentos ontológicos da Teologia. Foi necessário Schleiermacher pôr as coisas nos fundamentos humanos (a compreensão é um fenômeno humano, inato, biológico-psicológico - para a até agora melhor elaboração teórica desse insight, indico para O Método, de Morin). Foi necessário Dilthey aperfeiçoar a percepção desses mesmos fundamentos - a compreensão constrói-se cultural e historicamente. E foi necessária a sistematização filosófica desse movimento - o homem é um animal hermenêutico. Resultado: a compreensão humana é construção cultural e histórica.

8. Ora, se é a partir da inversão do Iluminismo - a Razão é absoluta - que resolvemos a trajetória - a Razão é arbitrariedade cultural -, com efeito não se resolveu nada. E arrisco dizer que Gadamer caminha por essa simplificação, porque não consegue captar a novidade do primeiro Heidegger, senão enfiando esse homem hermenêutico no embornal de Deus - a Tradição.

9. A relação do homem hermenêutico com a tradição não é, necessariamente, equilibrada: ele pode tanto deixar-se devorar por ela, quanto devorá-la. Conquanto seja indiscutível que será sempre desde dentro da tradição que o homem se erguerá, parece-me indiscutivel igualmente que esse homem pode erguer-se tanto, a ponto de devorar sua própria tradição. Esse homem pode matar-se - inclusive!

[chamo aqui a atenção do leitor para observações de Aldous Huxley a respeito de seu Admirável Mundo Novo. Huxley mata seu herói, no final da saga, porque o suicídio é a saída única contra a opressão. Todavia, ele, mais maduro, confessa que foi ingênuo. Sim, o suicídio é uma saída absolutamente legítima e humana, mas não a única. O herói, ao invés de se matar, não tinha como alternativa apenas a submissão ao regime. Podia fugir, inventar para si uma nova forma de vida, fora dos limites do regime... Ah, Gadamer, não vês quem somos nós?]

10. Ora, não me parece adequada a classificação da luta entre Hermenêutica e Crítica como a luta ainda entre, respectivamente, Romantismo e Iluminismo, porque tanto a Hermenêutica quanto a Crítica são filhas dos dois pais. Penso que a representação desse período, de Gadamer, talvez, fosse melhor delineada em termos da apropriação do novo por meio de esquemas ainda velhos. Gadamer, mais cristão do que romântico, não consegue pensar o homem só, e o fantasma de Deus o assombra nas noites germânicas. Escrupuloso, ressuscita Deus na forma da Tradição. Um calvinismo talvez inconsciente, talvez consciente. Alguém a tentar manter o esquema vivo, à espera das gerações que consigam pôr o velho, de novo, sobre o andor. Um outro Barth - este, doutrinal, aquele, estrutural...

11. O problema da Hermenêutica de Gadamer é que ela desconstrói o homem inteiramente. Não leva em conta que, de um lado, a tradição pode ser arrebentada, reinventada, adulterada, conquanto sempre por meio dela mesma. A tradição não é um monotrilho, é uma estão de lançamento. E essa percepção é tanto iluminista (emancipação!) quanto romântica (o claustro ienxorável da história!). Heidegger, o segundo, e Gadamer, parecem ter deixado de perceber, ou não querem que percebamos, que a verdadeira luta é entre a emancipação humana e a teologia, entre a abertura, sem-outros-fundamentos-que-o-ser-aí, e o determinismo político. Por que o fizeram? Não sei. Mas que, é meu juízo, desviaram a trajetória, é coisa que se pode arriscar dizer.


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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