sábado, 8 de maio de 2010

(2010/369) Deus morreu, Nietzsche morreu, e eu também não me sinto muito bem


1. O sentimento trágico nasce da contemplação silenciosa da banalidade travestidada de razão: esse super ego banal do homem médio moderno que interdita as "perguntas fundamentais". Aqui a "banalização superficialista", como escreveu Berdiaev, "adquire um carater escatológico". Nada mais superficial do que a racionalização do abismo. Nada mais repugnante do que o ateísmo civilizado e burguês com seus imperativos categóricos de uma razão cínica. Duas gargalhadas de Sade são suficientes para desconstruir a essa pantominia moderna e civilizada.

2. Como método teológico, resta-nos o niilismo racional e heuristico em ciências humanas que, por sua própria constituição (crítico e desconstrutivo), não pode fazer mais que demonstrar o cadafalso da história que nos apresenta a aporia do discurso religioso fundado na violência do mito, e a aporia de um humanismo, que, na tentativa de superar a "trivialidade da vida animal", não nos deu nada menos que um horror exterminador. Como não falar de trágico e de vazio – e não existe aqui nenhuma melancolia do paraíso - no momento onde essa mesma razão emancipada nos faz percorrer toda a galeria da história demonstrando que a "infinidade do homem" não é nenhuma outra infinidade que aquela de uma infâmia, segundo a qual o ultrapassamento do homem toma a forma de uma dominação inexáravel. (Jean Luc Nancy, La Declosion – Déconstruction du christianisme). Repito: depois do mito que ordenava o mundo com violência, a emancipação e o esclarecimento nos jogou no verdadeiro centro negro da nossa vertigem: o homem nu com sua razão cínica.

3. Após os desastres utópicos de racionalização revolucionária, o homem médio burgês encontrou enfim descanso na banalidade tecnológica moderna e civilizada (a escatologia de Berdiaev). Essas formas racionais de existência que instrumentalizam o resto de uma etiqueta humanista às expensas da barbárie que assola a periferia do mundo. Resta, para nós, desgraçados modernos, esse enfastioso humanismo que respira o medo e a covardia (Nietzsche), derradeiro antídoto legitimador da força de Estado que preserva da barbárie as nossas crianças indefesas (só as nossas, de casa, porque essa mentira de amor pelo mundo é discurso de ONG; no fundo, não ficamos tão afetados assim – e a vida continua...). E pra retirada de todas os excessos e excressências, nos resta esse positivismo psiquiátrico normalizador – pra citar Alan Badiou, De l'obscurantisme contemporain, Le Monde 8 maio – que mantém o mundo de pé e funcionando.

4. Nada mais próprio do que ouvir Nietzsche. Essa pena trágica.

O intelecto, como um meio para a conservação do individuo, desdobra suas forças mestras no disfarce; pois este é o meio pelo qual os indivíduos mais fracos, menos robustos, se conservam, aqueles aos quais está vedado travar uma luta pela existência com chifres e presas aguçadas [...] O que sabe propriamente o homem sobre si mesmo! Sim, seria ele sequer capaz de alguma vez perceber-se completamente, como se estivesse em uma vitrine iluminada? Não lhe cala a natureza quase tudo, mesmo sobre seu corpo, para mantê-lo à parte das circunvoluções dos intestinos, do fluxo rápido das correntes sanguíneas, das intricadas vibrações das fibras, exilado e trancado em uma consciência orgulhosa, charlatã! Ela atirou fora a chave: e ai da fatal curiosidade que através de uma fresta foi capaz de sair uma vez do cubículo da consciência e olhar para baixo, e agora pressentiu que sobre o implacável, o ávido, o insaciável, o assassino, repousa o homem, na indiferença de seu não-saber, e como que pendente em sonhos sobre o dorso do tigre. Enquanto individuo, em contraposição a outros indivíduos, quer conservar-se, ele usa o intelecto, em um estado natural das coisas, no mais das vezes somente para representação: mas, porque o homem, ao mesmo tempo por necessidade e tédio, quer existir socialmente e em rebanho, ele precisa de um acordo de paz e se esforça para que pelo menos a máxima bellum omnium contra omnes1 desapareça de seu mundo2.
5. A sensibilidade mediana de um homem covarde e infeliz é nossa escatologia realizada. Como escreveu Jean Luc Nancy, "mesmo a possibilidade trágica, que fora aquela dos gregos que se descobriram privados, abandonados, ou amaldiçoados pelos deuses, nos é recusada. Essa tristeza não guarda nada da estranha beleza trágica de onde Nietzsche ou o jovem Benjamim foram ainda testemunhas" (La Declosion – Déconstruction du christianisme).

6. Talvez, em se tratando de exercicio teológico, nada melhor que a heuristica em ciências humanas para esgarçar até a tampa esse niilismo alegre e mentiroso em que todos vivemos. Quem sabe assim, no esgarçamento da função da razão, não redescubramos o vazio, dando gargalhadas trágicas de desespero das pretensões autoritárias do mito e da altivez banal da razão cientifica. Depois disso, talvez nos voltariamos com coragem e lucidez para "as perguntas fundamentais", e, quem sabe, trataríamos com menos desprezo a derradeira palavra do último Heidegger: "existe ainda algum deus que possa nos salvar?".


JIMMY SUDÁRIO CABRAL

1 Guerra de todos contra todos
2 NIETZSCHE, F. Sobre a Verdade e a Mentira no Sentido Extramoral, Obras Incompletas, p.46. São Paulo, Abril Cultural, 1978

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