sexta-feira, 2 de abril de 2010

(2010/280) Autonomia e pecado


1. Racionalista - eu? Sim, o sou, sim. Mas, também, místico. Não sei se sou mais racionalista ou se sou mais místico. Honestamente, não sei. Mas tento ser, ao mesmo tempo, as duas coisas que sou - sem que uma precise fingir que a outra não existe, como meu amigo professor e colega que disse que é pastor e sociólogo, mas cujo sociológico que é não pode ensinar nada ao pastor que é. O racionalista que sou dá umas boas lições no místico que sou, ao passo que o místico que sou preenche, sem estupros racionalizadores reacionários e contra-racionais, os vazios da racionalidade.

2. Ah, sim, a mística pressupõe uma posição ideológica. Claro que sim: o racoinalista que sou constrange o místico que sou, informando-o de que ele, mísitico, não pode saber de nada que não seja humano, ao passo que o místico, então, recolhe da advertência o transbordamento hermenêticio e lógico dela: se eu, místico, não posso saber nada do que não seja não-humano, resulta correto dizer que também tu, meu eu racional, não o pode saber, de modo que posso entregar-me a uma mística consciente de ser mística, a uma mísstica que sabe que é mito, a uma mística que é imagem-em-ação, fantasia da alma, desejo e saudade... E meu eu racional, então, reflete e diz, ah, tá, assim dá...

3. Não se trata de ensinar nada a ninguém. Se trata de ser como sou. Por exemplo: se eu entendo adequadamente Gn 2-3, aquela narrativa sacerdotal, cujo objetivo é encabrestar homens e mulheres a submeterem-se ao que "Deus" - faz me rir: ao que os sacerdotes afirmam ser o "bom" e o "mau", o que se pode e o que não se pode fazer, porque é a eles, sacerdotes, que cabe dizer a todo mundo o que se pode e o que não se pode fazer, se entendo bem essa passagem, mando aos quintos dos infernos todos os homens e mulheres que, um dia, tomados desse "delírio de Deus", desse delírio-de-serem-deuses, do delírio-de-falarem-por-Deus, tomaram-se no papel de demiurgos da sociedade. Ao inferno todos esses demiurgos!

4. Contudo, tendo a consciência racionalista do embuste sacerdotal, da fraude sacerdotal, nem por um segundo se dissipa de minha alma o sentimento de pecado e culpa, porque o pecado e a culpa não são invenções sacerdotais, são cooptações sacerdotais. O pecado e a culpa são conseqüências inexoráveis da consciência humana - o homem é pecado. Ponto. O que os sacerdotes fazem é arvorarem-se em gestores desse estado, em intermediadores dessa condição, prometendo perdão, vendendo perdão, em troca da submissão bovina das consciências às suas aleivosias teológicas.

5. A racionalidade não faz de mim um soberbo. Faz de mim um homem que ouve os discursos sub-repitícios da fé, o laço dos baiodeiros a amealhar vidas em redis dissimulados de liberdade. Meu racionalismo me liberta do laço dos passarinheiros, conquanto corra sempre o risco de cair no laço de outros. Nietzsche, por exemplo. Quis, uma dia, fazer-me crer que a democracia é alguma coisa baixa, própria da ralé, indigna da condição aristocrática dos aristocratas. Ouvindo-o, e amando-o como e o amo, eu, contudo, lhe fiz saber que a democracia é isso tudo, porque a democracia rasga o ventre da aristocracia, e liberta a todos. Penso que Nietzsche odeie tanto os sacerdotes, não porque ame suficientemente o gado: mas porque os sacerdotes disputavam a boiada com a monarquia...


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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