domingo, 21 de março de 2010

(2010/248) Do teólogo que penso ser, da Teologia que penso ter


1. Sou teólogo. De cabo a rabo. Teólogo de ter cursado a gradução ("livre", e, agora, oficial), o mestrado ("livre" no direito, mas, tendo por professor e orientador ninguém mais do que Haroldo Reimer, alguém tem dúvida da qualidade do curso?) e doutorado (CAPES). Só me resta um pós-doutorado, que não descartei cursar - a rigor, um pós-doutorado é muitíssimo mais smples do que um doutorado; só preciso conseguir um orientador que me "ature", porque, convenhamos, não sou uma pessoa muito maleável. Mas isso fica para mais tarde.

2. Assumo-me, pois, como teólogo. É verdade que me sinto muito mais em casa com a Exegese histórico-social (histórico-crítica) do que com a "Teologia", mas isso se deve a duas razões: a) a primeira, é que minha formação teológica é mais bíblica do que sistemática, o que me deixa muito satisfeito, porque a Sistemática tende a desaparecer, ou, no limite, converter-se em disciplina histórica, como a Teologia Bíblica, ao passo que a Exegese, na pior das hipóteses, pode ser assumida pela historiografia... Até lá, contudo, vou ficando deslocado tanto da História, quanto da Teologia: a Exegese é uma ilha sem pátria no mundo... A segunda razão é que a Teologia que se pratica no Brasil, e, na prática, não saberia apresentar convenientes exceções, conquanto, eventualmente, existam, é uma Teologia que não posso praticar - mais... Ela é mitológica, tradicional, epistemologicamente comprometida com conteúdos doutrinários, normativa, não-científica (as alternativas metafóricas e poéticas não estão fora desse conjunto, uma vez que é as doutrinas que apelam). Expulsei-me dessa Cidade Bela, dessa Cidade de Deus. Fugi, saltando o muro, depois de ter entrado pelo portão da frente...

3. No entanto, é como teólogo que me defino. Acredito na Teologia, ao menos enquanto projeto possível. Há um fenômeno humano, universal, ao mesmo tempo cultural e supra-cultural, biológico, indiscutível, que é a abertura que o homem tem àquilo que seus conteúdos discursivos chama de sagrado. Na configuração doutrinária, no desdobramento cultural, na prática da vida dos povos, essa abertura recebe as mais diferentes interpretações, constitui os mais diferentes jogos religiosos, estabelece diversificados modos de compreensão do homem e do cosmo. Mas toda essa surpreendente variedade é a expressão situada da mesma potência psico-biológica humana, que aceito chamar de "abertura ao sagrado", assim como Mircea Eliade considerava ser o "sagrado" uma estrutura da consciência humana (Origens).

4. Para mim, a Teologia, para merecer um lugar na Universidade, tem de substituir seu objeto: não pode, mais, ser "Deus", o "ser" ontológico, a rigor, o deus das religiões, da fé. Não pode. Quanto mais a Teologia lutar por manter esse perfil epistemológico, tanto mais sua nudez se tornará patente, suas vergonhas ficarão à mostra. É o fenômeno da própria abertura em si, independentemente dos conteúdos que a partir daí se constituem, é o fenômeno humano da abertura ao sagrado que deve tornar-se objeto da Teologia.

5. Vai-se dizer que isso não é Teologia, que é Ciência(s) da Religião. Paciência. Logo se vê que quem afirma uma coisa dessas já sabe o que é Teologia, e, para essa pessoa, Teologia é o resultado da EBD e a prática do culto - um sujeito assim vai ter muita dificuldade de entender o que estou falando, porque ele não consegue tirar o pé nem da tradição nem da igreja. Paciência. O que estou dizendo é que a Telogia "de igreja" é apenas o resultado, como qualquer outro, de um fenômeno, esse sim, fundamental. Não há diferença entre as doutrinas cristãs e as hindus - são todas criadas pelo mesmo processo. Não há diferença entre o culto cristão e o maori - são todos desenvolvidos pelos mesmos processos. Não há diferença entre os deuses cristãos e os africanos - são todos engendrados pelo mesmo processo. Ora - a Teologia não pode ter por objeto de estudo o resultado dos processos humanos nos termos com que a fé os toma - ela deve ter por objeto de estudo o próprio processo humano ou, alternativamente, seu produto, mas não nos termos com que a fé os toma.

6. Se a abertura humana ao sagrado é biológica, é psicológica, é antropológica, é sociológica, é geográfica, é ecossitêmica, é histórica - ora, então ela constitui parte do real. Não importa se o que se engendra a partir daí é mitologia - e é: a Teologia não estudará apenas a mitologia, também ela (e como mitologia!), mas estudará, justamente, o processo complexo da constituição das cosmovisões religiosas e sua extraordinária força, sua extraordinária durabilidade, sua resistência inexorável. A "paz" entre as ciências e a religião, a Teologia, não se dará pela submissão das ciências aos mitos - os conteúdos doutrinários de todas as religiões são, todos, mitológicos. A "paz" entre a Teologia e as ciências se dará pela conversão da Teologia às ciências, e sua determinação em compreender-se como processo humano profundo.

7. Quando a Teologia investir todo seu esforço em compreender-se, em compreender os processos de abertura humana ao sagrado, em lugar de gastar forças em apologias inúteis. Quando a Teologia reconhecer que deve trocar a mitologia - as doutrinas - pela antropologia - a compreensão de sua base existencial, o homem. Quando a Teologia reconehcer que o que ela tem de positivo é a percepção do sagrado disponível nos discursos humanos, conquanto esteja confusa na compreensão objetiva do fenômeno, ao passo que as ciências, dispondo dos mecanismos metodológicos de esclarecimento do fenômeno "pecam" por, eventualmente, igualmente confundirem, mas em sentido contrário, o mesmo "mistério - a Telogia assume o mito, e foge da compreensão antropológica da produção desse mito, enquanto a ciência descarta o mito, desnuda o processo antropológico de sua produção, mas negligencia o fato fundamental de que o processo é antropológico, logo, advém de necessidades antropológicas, sejam elas quais forem. Quando a Teologia tornar-se ciência, e as ciências operarem em regime de cooperação com ela, agora, uma delas - então a Teologia poderá se converter num dos mais importantes instrumentos de auto-compreensão humana, como, até aqui, o foi a religião.

8. Enquanto isso, vamos assistir à romaria das doutrinas insuflando-se como conhecimento, a ignorância da recitação de mitologias assumidas como revelação, o desperdício de energias investidas não na transformação esclarecida da sociedade, mas no recalque das forças que efetivamente a engendram, o obscurantismo de "velações" do real político por meio de "cortinas de fumaça" espirituais. E a Teologia receberá, nas costas, esse peso enorme, e, na sua ficha, os registros desses crimes. Porque, por mais lúcidas que pareçam, por mais bem-intencdionadas, todas as declarações da Teologia são, a rigor, contra-emancipatórias, e, quanto mais ela pensa contribuir com o mundo, mas alimenta os mecanismos de sua alienação. Há caso de desperdício maior no planeta?




OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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