sábado, 30 de janeiro de 2010

(2010/117) Entender não é crer - e vice-versa


1. Durante a Idade Média, a racionalização teológica criou fórmulas tais como "crer para entender" e "fé que busca entendimento". Desavisados, apologistas engajados ou consciências axiologicamente excêntricas à racionalidade moderna consideram que essa postura coincida com "racionalidade". Na verdade, o dia em que a Teologia deixou-se enamoerar pela retórica da racionalidade, ainda que para administrá-la, assinou seu atestado de morte. No entanto, aquelas três espécies de teólogos, mesmo hoje, caminham como que desapercebidos disso. "Crer para entender" não constitui uma rubrica do capítulo da modernidade - mas uma forma de racionalização.

2. Não que a fé seja menos do que a ciência. Ela é, todavia, aí sim, absolutamente diferente. Conquanto haja elementos de fé - certo tipo de fé - na ciência, o nevrálgico, o incomparável aí é o regime em que a fé pode operar na ciência, porque, aí, ela exerce um papel segundo, subordinado, crítico, sujeito à morte.

3. Na Teologia - cristã - operam-se dois regimes fundamentais de fé. Um, com base em Normas da Tradição - o modelo católico (deixo de lado o problema crucial do Vaticano II que, a rigor, subverte o jogo, quando submete a Tradição às Escrituras - é a tragédia protestante contaminando Roma). O outro modelo - evangélico-protestante - opera com base nas Escrituras (deixo de lado o contingente dissimulado, eventualmente hipócrita, de, no fundo, as Escrituras apenas funcionarem de arrimo político para as retóricas denominaconais - mas tratemos da "tese" protestante e pronto).

4. De um lado, o modelo católico tem "corpo". Uma vez que é o "clero" quem determina o conteúdo da fé, a catequese é "objetiva" e didaticamente confortável. O prejuízo do modelo é ter de admitir que se trata de proposição tradicional, com base única e exclusivamente nos pronunciamentos de um corpo teológico organizado. Erasmo, por exemplo, não va problemas nisso, desde que Roma garantia unidade ao corpo cristão.

5. De outro lado, o modelo protestante dá uma no prego e outra na ferradura. Ele se revela mais "objetivo", no sentido de que o conteúdo da fé está registrado de modo definitivo na Escritura. No entanto, desde que se passou a levar a sério os problemas de interpretação - que só se resolvem dentro do modelo católico! -, as Escrituras tornaram-se cada vez menos politicamente úteis, de modo que a tendência ao discurso de "fé denominacional" acentuou-se - os "bíblias" tornaram-se crentes de partido, e a retórica política, cada vez mais cênica.

6. Minha relação com esses dois modelos está definitivamente rompida. O meu problema, agora, é de outra natureza. Empreendo relativo esforço para a interpretação histórico-crítica das Escrituras, e é a isso que se resume minha relação mística com elas - a busca pelo setido. No entanto, tenho consciência de que entender não é crer. Se, de um lado, as denominações evangélico-protestantes estão repletas, apinhadas, de crentes que crêem (das doutrinas), mas não entendem (as Escrituras), os métodos histórico-críticos, por sua própria configuração ideológica, promovem aprofundamento do entendimento (das Escrituras), mas, se honestamente praticados, subvertem necessariamente a fé (nas doutrinas).

7. A uma consciência crítica, histórico-crítica, restaria uma fórmula do tipo - "creio na minha interpretação histórico-crítica". Ora - que tipo de "segurança" espiritual essa atitude produz, se o leitor histórico-crítico tanto sabe de sua condição antropológica, quanto reconhece a condição humana dos hagiógrafos? Crer, um crente, no que um padre ou um pastor diz não é diferente de crer um histórico-crítico em sua interpretação crítica da Bíblia - trata-se do mesmo tipo de fé. A honestidade acadêmica, senhores, salvo engano, interdita a matriz evangélico-protestante. Resta ver se ela tem futuro nos moldes católico-romanos.


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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