sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

(2009/648) Cenas em torno de uma conversa com meu amigo Élcio Sant'anna


1. Cena um. No encontro "carioca/fluminense" da ABIB, meu amigo Élcio Sant'anna me fez uma pergunta: por que coloco no mesmo "cesto" exegese e Edgar Morin? Naturalmente que a pergunta tem seus pressupostos, quero dizer, há, aí, implícita, uma "idéia" a respeito de Morin. Não vêm ao caso. Élcio mos apresentou e, assim, pude desfazer o equívoco. Foi uma boa conversa, não, Élcio?

2. Cena dois. 2009/2 é o semestre de Hermenêutica, na Faculdade Batista (FABAT). No primeiro, "dou" Epistemologia e, no segundo, Hermenêutica (ninguém passa incólume por essas sessões... não assim, seguidas, nesse pacote, com seus "convidados"). Paramos um bom tempo sobre o "primeiro" Heidegger, aquele que teria dissolvido o Ser - o Ser de Parmênides, logo, da Grécia filosófica, logo, do Cristianismo greco-judaico-romano. Heidegger acorda, o Ser está ali - no meio de sua vida, puf!, ele, com um gesto mágico, faz desaparecer a ilusão eidética...

3. Cena três. Agora há pouco, relia - sempre, sempre releio Nietzsche - Crepúsculo dos Ídolos. Em Nietzsche, transito entre momentos de grande aborrecimento (quando o aristocrático anti-democrático fala) e momentos de grande euforia (quando o iconoclasta fala). Há um parágrafo na seção "A Razão na Filosofia" - irônico até os ossos -, onde, com um só gesto, Nietzesche: destrói o Ser, antecipa Heidegger, recupera Heráclito e, assim, desse jeito, antecipa, em cem anos, Edgar Morin. É um parágrafo onde corpo e história se (re-)encontram - o que, mais uma vez, me faz pressentir que não se lê Nietzsche, apenas se repetem citações de citações de citações, intermináveis romarias de citados...

4. Eis, na íntegra, que parágrafo!

Os senhores me perguntam o que são todas as idiossincrasias dos filósofos?... Por exemplo, sua falta de sentido histórico, seu ódio contra a representação mesma do vir-a-ser, seu egipcismo. Eles acreditam que desistoricizar uma coisa, torná-la sub specie aeterni, construir a partir dela uma múmia, é uma forma de honrá-la. Tudo o que os filósofos tiveram nas mãos nos últimos milênios foram múmias conceituais; nada de efetivamente vital veio de suas mãos. Eles matam, eles empalham, quando adoram, esses senhores idólatras de conceitos. Eles trazem um risco de vida para todos, quando adoram. A morte, a mudança, a idade, do mesmo modo que a geração e o crescimento são para eles objeções - e até refutações. O que é não vem-a-ser; o que vem-a-ser não é... Agora, eles acreditam todos, mesmos com desespero, no Ser. No entanto, visto que não conseguem se apoderar deste, eles buscam os fundamntos pelos quais ele se lhes oculta. "É preciso que uma aparência, que um 'engano' aí se imiscua, para que não venhamos a perceber o ser: onde está aquele que nos engana?". "Nós o temos, eles gritam venturosamente, o que nos engana é a sensibilidade! Esses sentidos, que por outro lado são mesmo totalmente imorais, nos enganam quanto ao mundo verdadeiro. Moral: conseguir embaraçar-se do engano dos sentidos, do vir-a-ser, da história, da mentira. História não é outra coisa senão crença nos sentidos, crença na mentira. Moral: dizer não a tudo o que nos faz crer nos sentidos, a todo o resto da humanidade. Tudo isso é o "povo". Ser filósofo, ser múmia, apresentar o monotonoteísmo através de uma mímica de coveiros! - E antes de tudo para fora com o corpo, esta idée fixe dos sentidos digna de compadecimento! Este corpo acometido por todas as falhas da lógica, refutado, até mesmo impossível, apesar de ser suficientemente impertinente para se portar como se fosse efetivo!".

Eu coloco de lado, com elevado respeito, o nome de Heráclito (...).
5. Não é por outra razão que Morin - também - ressuscita Heráclito, o "pensador" do vir-a-ser. De modo que temos, aí, uma ponte: Heráclito - Nietzsche - Heidegger (o primeiro!, uma vez que o segundo é seu próprio assassino) - Morin. Se levarmos a sério Morin - e eu o levo! - deveríamos, ainda, pôr Marx, ali, entre Heráclito e Nietzsche.

6. Veja, Élcio, num mesmo parágrafo - a "singularidade", a História, o vir-a-ser, o corpo, os sentidos, a sensibilidade... Isso, Élcio, é ou não é, exegese? Oh, meu amigo, há ainda muita coisa em Morin que me faz ligá-lo - reconhecer a ligação! - à exegese (que eu pratico, bem sabido!): ele trata textos como "hologramas" situados...

7. Agora, deixando de falar diretamente a Élcio, falo aos re-introdutores do Ser, disfarçados em pós-modernidade a-crítica. Nietzsche chamou seu trabalho de "monotonoteísmo". E com razão! Há um ranço de "teo-cristianismo" na insistência de desestoricizar tudo, de acabar com a História, de dissolver a crítica. É a criançada "emancipada" repetindo os erros dos pais (quando não são seus crimes programáticos!)... É a vingança de Platão, tentando pisar a cabeça de Heráclito. É porque eu assim reconheço a fala não-exegética, sistemática, não histórica, eidética, não telúrica, ctônica, celeste, metafísica, "metafórica!", que meu corpo sente-se desconfortável, a cara traz esgares indisfarçáveis e a bílis projeta-se à boca... É somática a percepção de que constrói-se, a todo instante, um movimento de retorno àquilo.

8. Uma estratégia é fazer Nietzsche dizer o que nunca disse. Fazer dele um anti-histórico, anti-exegético, anti-medotológico... Levar Jesus de Nazaré para o Templo de Jerusalém! Há um problema aí, senhores - Jesus não escreveu nada, e se pode fazer dele o que se quiser, como bem o ensinam os Evangelhos. Nietzsche, contudo, escreveu - e ele bem sabia que, acima de tudo, para ser bom teólogo é mister a má filologia...






OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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