1. Extraio o Capítulo III de Deus e os Homens, de Voltaire (1), uma realmente boa peça de leitura:
Quando uma nação é reunida em sociedade, ela necessita da adoração de um Deus, à proporção que os cidadãos precisem ajudar-se mutuamente. É por esse motivo que nunca houve nação organizada sob leis que não tenha reconhecido, desde tempos imemoriais, uma divindade.
Ter-se-ia o Ser supremo revelado aos primeiros a dizerem que é necessário amar e temer a Deus, punidor do crime e recompensador da virtude? Não, é claro. Deus não falou a Tot, o legislador dos egípcios, ao Brama dos indianos, ao Orfeu da Trácia, ao Zoroastro dos persas, etc., etc.; mas em todas as nações houve homens com suficiente bom senso para ensinar essa doutrina útil, como houve homens que, pela força da sua razão, ensinaram aritmética, geometria e astronomia.
Um, medindo seus campos, descobriu que o triângulo é a metade do quadrado e que os triângulos de mesma base e mesma altura são iguais. Outro, semeando, colhendo e guardando suas ovelhas, percebeu que o sol e a lua voltavam mais ou menos ao mesmo ponto de que tinham partido, e não se afastavam de certo marco, ao norte e ao sul. Um terceiro considerou que os homens, os animais, os astros, não se fizeram por si mesmos e percebeu que existe um Ser supremo. Um quarto, impressionado com os males que os homens faziam uns aos outros, concluiu que, se havia um Ser que fizera os astros, a terra e os homens, esse Ser devia distribuir o bem aos bons e punir os maus. Essa idéia é tão natural e tão boa, que foi facilmente aceita.
A mesma força de nosso entendimento que nos fez conhecer a aritmética, a geometria, a astronomia, que nos fez inventar as leis, também nos fez, portanto, conhecer Deus. Basta dois ou três bons argumentos, como os que vemos em Platão, entre muitos ruins, para adorar a Divindade. Não é necessária uma revelação para saber que o sol, de mês em mês, corresponde a estrelas diferentes; não é necessária uma revelação para compreender que o homem não se fez a si mesmo e que dependemos de um Ser superior, qualquer que seja.
Mas se uns charlatões me dizem que há uma virtude nos números; se, medindo meus campos, eles me enganam; se, observando uma estrela, pretendem que ela determina meu destino; se, anunciando-me um Deus justo, ordenam-me que lhes dê meus bens em nome de Deus, estão eu declaro que são todos uns velhacos e procuro orientar-me por conta própria, com a pouca razão que Deus me deu.
2. Muito instrutivo o texto. A idéia de Deus - de um "Ser superior, qualquer que seja" - é uma idéia "útil". Certamente que o é - e disso até Marx o sabia, quando diagnosticou a religião como "ópio". Também a Teologia da Libertação o sabe, quando, alterando a fórmula do ópio, converte-o em cafeína, para alvoroço das massas oprimidas. Ao fim e ao cabo, é Deus empurrando pra frente, ou é Deus empurrando pra trás, o que é bastante útil...
2. Voltaire não vai discutir a questão por via epistemológica. É um "prático". É útil a idéia de Deus para manter a roda rodando, a água correndo, o sol brilhando. Os bons devem inspirar-se em Deus - os maus, temê-lo (e, de qualquer forma, sempre há a polícia...).
3. Da "observação" da Natureza e da Humanidade, depreende-se uns tantos deuses superiores, cada povo depreende o seu, mas, a rigor, dá-se o mesmo: Deus é útl, como útil é a astronomia, a aritmética, a geometria. E tudo fica em paz. E tudo funciona direitinho - como deve funcionar...
4. Mas não se vá muito adiante. Que essa utilíssima idéia não se arvore em ruir com o bom senso. Àqueles que pretendem pôr o carro na frente dos bois, Voltaire os chama de "charlatões" - e os há às toneladas, hoje - e "velhacos". Os astrólogos que se virem para responder à acusação que Voltaire lhes faz. De minha parte, concordarei com ele, naquilo que toca aos charlatões e aos vehacos da teologia - manipuladores da boa idéia divina, transformando-a em posto de coleta., em fluxo de capitais. Aí está o perigo das boas "idéias boas" - na mão de canalhas, tornam-se péssimas idéias...
5. O que significa que não há um modo definitivo de lidar com a idéia de Deus , de se precaver dela - se me entrego muito voluntariamente a ela, se perco o bom senso, pode vir - e vem! - um patife qualquer e me engana, fazendo comigo o que quer, em nome dessa boníssima idéia. Por outro lado, se não posso simplesmente balançar a cabeça e expulsar a idéia, tenho, de qualquer modo, de a controlar eticamente, fazendo com ela o que os judeus fizeram, quando, depois de séculos de delinqüência, Yahweh é obrigado a tornar-se, apenas, bonzinho... Ele não terá gostado muito, mas fazer o quê?
6. Ou seja: se você pára para pensar seriamente no assunto, a boa idéia revela-se naquilo que ela é: uma idéia, às vezes, boa, às vezes, má. Tudo depende do criador e/ou manipulador da idéia. Tudo depende do bom senso... E esse é o problema da "saída" prática de Voltaire - se você tem um pouco de razão na cabeça, até dá pra enfrentar velhacos e charlatões - mas e quanto à massa enorme dos homens e das mulheres comuns, que tomam justamente charlatões e velhacos como encarnação do próprio Espírito Santo?
OSVALDO LUIZ IBEIRO
(1). Voltaire, Deus e os Homens. São Paulo: Martins Fontes, 1995. p. 8-9.
Um comentário:
Muito boa ideia, mesmo! Mas será que cola?
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