1. Ainda não foi nem vai ser dessa vez - se o será um dia... Desde que Lutero pôs na cabeça a malsã idéia de deixar a Bíblia à mão dos leigos que a Teologia Sistemática e a assim nascente Exegese tornaram-se irreconciliáveis. Até então, e, na prática, também daí pra frente, a Bíblia sempre foi interpretada de acordo com a doutrina. Mesmo depois de Lutero. Mesmo por Lutero. Nunca, em nenhum lugar institucional, a Bíblia foi interpretada segundo as regras histórico-críticas.
2. Regras essas, no entanto, que o fato de a Bíblia ter sido posta à mão dos leigos suscitou. Foi a própria Igreja, tomada aí como estudiosos dentro dela, que inventou o método histórico-crítico. Mas essa invenção assumiu aparências diferentes, conforme fosse o método operado, seja na Igreja, seja na Univrsidade, ora por "religiosos comprometidos", ora por pesquisadores, ainda que religiosos, não tão comprometidos assim com a "tradição" normativa.
3. Os protestantes dominaram os séculos da Exegese, e também eles levaram-na a separar-se irremediavelmente da Teologia. Há mais ou menos 225 anos, se tomarmos 1787 como data didática, que Exegese, Teologia Bíblica e História da Religião de Israel tornaram-se um continente que muito pouco dialoga com a Teologia Sistemática, Dogmática ou Fundamental. Os protestantes racharam não apenas a Igreja (que fragmentaram até não mais poder - mas sempre se pode mais), mas, também, a própria Bíblia - agora cortejada, de um lado, pela Teologia, e, de outro, pela Exegese.
4. Os católicos começaram a entrar na briga por volta da década de 1940, com a Divino Aflante Espírito, e, após o Vaticano II, com a Dei Verbum, que, na década de 90, consubstancia-se na forma de "manual", no livrinho A Interpretação da Bíblia da Igreja. A orientação para a leitura por meio do método histórico-crítico fora uma surpresa - nenhuma Igreja do planeta, nenhuma, ousara afirmá-lo. Pelo contrário, as Igrejas apavoram-se - e com razão - diante da metodologia histórico-crítica. Roma, contudo, mandava que seus fiéis o usassem na leitura das Sagradas Palavras...
5. Todavia, parece que as coisas vão voltar para o lugar. Eis um trecho do comunicado de Sua Santidade, o papa Ratzinger, ano passado, a respeito justamente desse tema:
6. Nos termos em que o Papa põe a questão, pode-se usar o método histórico-crítico, desde que seja submetido ao controle da fé, que é o que se deve entender pelo "retorno" da consideração hermenêutica do "divino" no texto. Ora, uma vez que se parte de uma leitura sobrenatural da Bíblia, o método torna-se imprestável. O método chama-se histórico-crítico, justamente porque aplica os critérios críticos da historiografia moderna aos textos constitutivos das Sagradas Escrituras. Ora - o que Ratzinger chama de "exegese canônica" e "analogia da fé" simplesmente inviabiliza completamente qualquer crítica conseqüente, reservando-a apenas àquelas narrativas que convém ao "sistema" criticar. Já se vinha namorando esse "cannocical approach" nos Estados Unidos e na Alemanha - em ambiente "protestante". A tendência tornou-se romana, agora...
7. Cedo demais Ratzinger se pronuncia. É o indicativo de que não vai ser dessa vez, a despeito de um Concílio, que as Escrituras serão, finalmente, lidas à luz de seu próprio contexto, cada narrativa em seu lugar. O "cânon", a "tradição", a "fé", ainda que sejam vários e várias!, essas injunções manipuladoras, permanecerão praticando a preservação de um cadáver doutrinário, e escondendo a História viva por debaixo de tanto mofo e bolor.
8. De minha parte, lamento, mas nem se me dá. Há muito não me pauto por clero algum, seja católico, seja protestante. Há muito tento, no limite de minhas forças e no contexto de minhas limitações (poucas, aquelas, muitas, estas), compreender histórico-criticamente a Bíblia. Vejo nesse pronunciamento papal apenas o sinal de que Lutero fora, afinal, bastante católico em seu gesto: lá, um livre-exame cínico e de faz-de-conta; aqui, um método histórico-crítico castrado e silenciado. Nos dois casos, um tapa na cara da história. Mais uma razão para não se ver sentido algum na separação dos cristãos - somos todos, afinal, da mesma índole...
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
Nenhum comentário:
Postar um comentário