sexta-feira, 9 de outubro de 2009

(2009/531) A Sistemática respira aliviada...


1. Ainda não foi nem vai ser dessa vez - se o será um dia... Desde que Lutero pôs na cabeça a malsã idéia de deixar a Bíblia à mão dos leigos que a Teologia Sistemática e a assim nascente Exegese tornaram-se irreconciliáveis. Até então, e, na prática, também daí pra frente, a Bíblia sempre foi interpretada de acordo com a doutrina. Mesmo depois de Lutero. Mesmo por Lutero. Nunca, em nenhum lugar institucional, a Bíblia foi interpretada segundo as regras histórico-críticas.

2. Regras essas, no entanto, que o fato de a Bíblia ter sido posta à mão dos leigos suscitou. Foi a própria Igreja, tomada aí como estudiosos dentro dela, que inventou o método histórico-crítico. Mas essa invenção assumiu aparências diferentes, conforme fosse o método operado, seja na Igreja, seja na Univrsidade, ora por "religiosos comprometidos", ora por pesquisadores, ainda que religiosos, não tão comprometidos assim com a "tradição" normativa.

3. Os protestantes dominaram os séculos da Exegese, e também eles levaram-na a separar-se irremediavelmente da Teologia. Há mais ou menos 225 anos, se tomarmos 1787 como data didática, que Exegese, Teologia Bíblica e História da Religião de Israel tornaram-se um continente que muito pouco dialoga com a Teologia Sistemática, Dogmática ou Fundamental. Os protestantes racharam não apenas a Igreja (que fragmentaram até não mais poder - mas sempre se pode mais), mas, também, a própria Bíblia - agora cortejada, de um lado, pela Teologia, e, de outro, pela Exegese.

4. Os católicos começaram a entrar na briga por volta da década de 1940, com a Divino Aflante Espírito, e, após o Vaticano II, com a Dei Verbum, que, na década de 90, consubstancia-se na forma de "manual", no livrinho A Interpretação da Bíblia da Igreja. A orientação para a leitura por meio do método histórico-crítico fora uma surpresa - nenhuma Igreja do planeta, nenhuma, ousara afirmá-lo. Pelo contrário, as Igrejas apavoram-se - e com razão - diante da metodologia histórico-crítica. Roma, contudo, mandava que seus fiéis o usassem na leitura das Sagradas Palavras...

5. Todavia, parece que as coisas vão voltar para o lugar. Eis um trecho do comunicado de Sua Santidade, o papa Ratzinger, ano passado, a respeito justamente desse tema:

La "Dei Verbum" 12 ofrece dos indicaciones metodológicas para un adecuado trabajo exegético. En primer lugar, confirma la necesidad de la utilización del método histórico-crítico, cuyos elementos esenciales describe brevemente. Esta necesidad es la consecuencia del principio cristiano formulado en Juan 1, 14: "Verbum caro factum est". El hecho histórico es una dimensión constitutiva de la fe cristiana. La historia de la salvación no es una mitología, sino una verdadera historia y, por lo tanto, hay que estudiarla con los métodos de la investigación histórica seria.

Sin embargo, esta historia posee otra dimensión, la de la acción divina. En consecuencia la "Dei Verbum" habla de un segundo nivel metodológico necesario para la interpretación justa de las palabras, que son al mismo tiempo palabras humanas y Palabra divina. El Concilio dice, siguiendo una regla fundamental para la interpretación de cualquier texto literario, que la Escritura hay que interpretarla en el mismo espíritu en el que fue escrita y para ello indica tres elementos metodológicos fundamentales cuyo fin es tener en cuenta la dimensión divina, pneumatológica de la Biblia: es decir se debe 1) interpretar el texto teniendo presente la unidad de toda la Escritura; esto hoy se llama exégesis canónica; en los tiempos del Concilio este término no había sido creado aún, pero el Concilio dice la misma cosa: es necesario tener presente la unidad de toda la Escritura; 2) también se debe tener presente la viva tradición de toda la Iglesia, y finalmente 3) es necesario observar la analogía de la fe.

Sólo allí donde los dos niveles metodológicos, el histórico-crítico y el teológico, son observados, se puede hablar de una exégesis teológica - de una exégesis adecuada a este Libro. Mientras que con respecto al primer nivel la actual exégesis académica trabaja a un altísimo nivel y nos ayuda realmente, la misma cosa no se puede decir del otro nivel. A menudo este segundo nivel, el nivel constituido por los tres elementos teológicos indicados por la "Dei Verbum", casi no aparece. Y esto tiene consecuencias más bien graves.


6. Nos termos em que o Papa põe a questão, pode-se usar o método histórico-crítico, desde que seja submetido ao controle da fé, que é o que se deve entender pelo "retorno" da consideração hermenêutica do "divino" no texto. Ora, uma vez que se parte de uma leitura sobrenatural da Bíblia, o método torna-se imprestável. O método chama-se histórico-crítico, justamente porque aplica os critérios críticos da historiografia moderna aos textos constitutivos das Sagradas Escrituras. Ora - o que Ratzinger chama de "exegese canônica" e "analogia da fé" simplesmente inviabiliza completamente qualquer crítica conseqüente, reservando-a apenas àquelas narrativas que convém ao "sistema" criticar. Já se vinha namorando esse "cannocical approach" nos Estados Unidos e na Alemanha - em ambiente "protestante". A tendência tornou-se romana, agora...

7. Cedo demais Ratzinger se pronuncia. É o indicativo de que não vai ser dessa vez, a despeito de um Concílio, que as Escrituras serão, finalmente, lidas à luz de seu próprio contexto, cada narrativa em seu lugar. O "cânon", a "tradição", a "fé", ainda que sejam vários e várias!, essas injunções manipuladoras, permanecerão praticando a preservação de um cadáver doutrinário, e escondendo a História viva por debaixo de tanto mofo e bolor.

8. De minha parte, lamento, mas nem se me dá. Há muito não me pauto por clero algum, seja católico, seja protestante. Há muito tento, no limite de minhas forças e no contexto de minhas limitações (poucas, aquelas, muitas, estas), compreender histórico-criticamente a Bíblia. Vejo nesse pronunciamento papal apenas o sinal de que Lutero fora, afinal, bastante católico em seu gesto: lá, um livre-exame cínico e de faz-de-conta; aqui, um método histórico-crítico castrado e silenciado. Nos dois casos, um tapa na cara da história. Mais uma razão para não se ver sentido algum na separação dos cristãos - somos todos, afinal, da mesma índole...


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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