sábado, 1 de agosto de 2009

(2009/409) Heráclito e mais uma na "epistemologia não-fundacional"


1. Não escondo de ninguém minha absoluta admiração - e num nível assim, só a ele - a Edgar Morin. Gênio vivo - dentre todos os autores que já li, inigualável. Todos os demais que admiro, e não são, contudo, poucos, constituem-se, em última análise, em aprofundamentos "focais" em aspectos isolados das proposições de Edgar Morin, as quais, é bom não negligenciar o fato, são, por sua vez, aprofundamentos sitêmicos a um conjunto agora absolutamente amplo de especialidades, recolhido de terceiros e levado a termo pelo gênio incomparável do teórico da complexidade.

2. Edgar Morin parte de teóricos anteriores, aprofunda-os, "costurando-os" uns aos outros - e essa é sua marca registrada: a quebra, bem sucedida, do paradigma disjuntivo das ciências recém-nascidas. Morin respeita as idiossincrasias teórico-metodológicas de "cada" ciência, mas sabe que, assim, idiossincrásicas apenas, perdem toda a sua relevância, porque é quando elas se articulam entre si - transdisciplinaridade! - que revelam a possível imersão humana no "natureza", ou seja, na "verdade". Não preciso dizer que Morin é severamente crítico em relação àqueles paradigmas que são disjuntivos, simplificadores, não-fundacionais, "idealistas", e só idealistas, "materialistas", e só materialistas. Por outro lado, retorna ao mais longínquo passado para, desde lá, recuperar desvios perdidos, proposições valiosas, insights desperdiçados.

3. Numa dessas viagens arqueológicas ao passado, encontra Heráclito. E, agora, permitam-me citar Heráclito, para, mais uma vez, agora com ele, dar mais uma boa pancada na cabeça (já de todo tonta) da epistemologia não-fundacional. Ao final, recomendarei um tratamento freudiano para a paciente.

4. Ei-lo: "No sono, a memória nos abandona, mas nós retomamos a consciência de nosso ser logo que despertamos. Pois os sentidos fecham seus poros quando nós dormimos, de tal modo que nosso espírito fica separado do meio ambiente, e não temos outra ligação com o mundo exterior exceto pela respiração, comparável a uma raiz. Ao despertar, ele se dirige de novo para os poros dos sentidos como para janelas, toma contato com o mundo que o cerca e recobra a faculade da razão. E, como os carvões se transformam e queimam perto do fogo, e longe dele se apagam, assim a parte de meio ambiente em nosso corpo fica privada de razão pela separação" (Gérard Legrand, Os Pré-Socráticos, Jorge Zahar, 1991, p. 57).

5. Viram? Os sentidos fazem de nós, nós. Sem eles, "dormimos". E é assim, porque é do meio ambinte que extraímos, por meio dos sentidos, todas as informações necessárias para a elaboração de nosso ser, sejam aquelas propriamente virais e biológicas, sejam aquelas propriamente psicológicas e noológicas. Somos em função do meio, e o meio "é" em função de nós. Fora do meio ambiente, só há sonho e dormência.

6. Freud chamava à fuga da realidade de "princípio de prazer". Há, pois, em nível patológico, uma ênfase na fuga do "real", uma fuga para dentro de discursos tomados, então, como o "real", ainda que, dentro deles, afirme-se não haver "real". A epistemologia não-fundaconal começa por dizer justamente que não há real, que não há fundamento possível no qual ancorar nossa conciência, e, então, a primeira coisa que faz, é, assim, criar esse fundamento, recurso político-estratégico para poder dizer e fazer o que quer que venha quer fazer e dizer, sem a necessidade de dar satisfações... a nós. Sim, a nós, aos outros, porque, à vida, ao real, dão, sim, sempre, a despeito da birra ideológica, da manha infantil ou da estratégia maximamente má-intencionada de seu discurso.

7. Penso, sinceramente, que epistemólogos não-fundacionais devem tratar-se com Freud. Sei que também careço cá de meus tratamentos, e, talvez, até de CTI - se há cura para meus tormentos. Mas esse mal, a fuga do real, a necessidade de inventar um mundo falso onde minha cabeça gire astutamente, esse mal (será?) não cultivo na alma. Pelo contrário: quero chegar ao fundo desse real, até onde meus poros me permitam, até aonde a dor seja suprotável, mas ao preço de o prazer, aí, ser também inigualável.


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

PS. para a relação indissociável entre "eu" e o "não-eu", isto é, entre o homem e o meio ambiente, e isso para a possibilidade da própria constituição do homem enquanto hmem, sugiro meu ensaio O Complexo Hermenêutica e Consciência – da viscosidade úmida dos mundos, disponível aqui.

2 comentários:

Robson Guerra disse...

Pois é, Osvaldo, Heráclito há vários séculos já nos apontava um caminho, mas parece que não levaram-no à sério, preferiram o de Parmênides. E dá-lhe Parmênides até hoje.

Quem tem ouvidos que ouça. Mas, além dos olhos, parece que arrancaram também os ouvidos.

Lembrei-me agora de uma episódio de Cavaleiros do Zodíaco (!) onde Chacra de Virgem retira todos os 5 sentidos do Cavaleiro de Fênix para derrotá-lo, mas, que nada, só com a força de seu chi Fênix se levanta e derrota Chacra de Virgem.

Acho que os não-fundacionais pensam ser como o Cavaleiro de Fênix, não precisam dos sentidos, basta-lhes a força do pensamento, o chi, sei lá...

Mas não adianta, sempre tem uma pedra para dar uma topada, uma farpa a ser cravada no dedo, um desarranjo intestinal. Quero ver negar o real nessas horas.

Peroratio disse...

Essa do chi foi na mosca... No fundo, a espistemlogia não-fundacional é uma degenerescência (porque não assumidamente mitológica) do platonismo, esse mitológico até a próstata - a despeito de não nos contarem esse lado de Platão, na escola (deve ser "vergonha" filosófica...). Toda e qualquer epistemologia que pretenda tratar/compreender o pensamento como um fenômeno não-material, não-biológico, vai cair nesse fosso comum da negação do valor epistemológico da matéria. Nos pré-socráticos, "matéria" e "natureza" são traduções da mesma expressão - uma referência à phisys. Logo, seja Platão, seja Paulo, sejam essas epistemologias não-fundacionais, são, todos, assombrações, sobrenaturais, que cuidam vir o pensamento das estrelas, do céu, de qalquer lugar não-acarbonado... De Platão se desculpa o tempo, a proximidade com os mitos, a proximidade com o extremo oriente nirvânico. Paulo, a ele se desculpa a comoção neoplatônica - talvez, um entorpecimento religioso. Mas as epistemologias "modernas" e "pós-modernas", pós-darwinianas... Ora, até Nietzsche, que equivocadissimamente é citado como patrono dessas assombralidades imateriais, sabia que a consciência, logo, o pensamento, é orgânico...

Mas você disse bem: arrancaram-se os olhos, os ouvidos... Sobraram os buracos... vazios...

Osvaldo.

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