sábado, 1 de agosto de 2009

(2009/408) Teologia e experiência religiosa


1. Há que se distinguir entre a pragmática teológica estética e política, de um lado, e a pragmática teológica heurística, de outro. Dizê-lo requer duas explicações.

2. Primeira explicação: aplica-se o nome "teologia" a diferentes pragmáticas, de modo que práticas absolutamente diferentes são tratadas pelo mesmo termo. Por exemplo: o culto, a educação teológica, a devoção, a pesquisa. Não há, e talvez, lamentavelmente, nenhuma relação entre pesquisa teológica e "educação" teológica, por exemplo, uma vez que a "educação" teológica, quase que invariavelmente, tem-se materializado como "doutrinamento", e nada é mais contrário à pesquisa do que o espírito de doutrinamento, de que o Cristianismo jamais se desvencilhou até hoje (naturalmente que, aqui, restrinjo, apenas metodologicamente, o conceito à teologia cristã, ainda que, mais do que nunca, "teologia", agora, não seja mais um termo particularmente "cristão").

3. Segunda explicação: pragmática diz respeito ao comportamento intencional humano. Tudo quanto um ser humano possa fazer "teleologicamente", não-fisiologicamente (apenas) [por exemplo, "respirar", "comer" {para "matar a fome, porque comer em restaurante francês, por exemplo, já é "estético"}, "defecar" - as funções meramente biológicas, próprias da "vida", qualquer que seja sua expressão], tudo isso está restrito a três comportamentos hiperônimos. Esses três macro-comportamentos podem ser expressos por três verbos: querer, sentir, saber.

4. Desdbrados os três verbos pragmáticos, resultam nas três câmaras pragmáticas: querer = volição (vontade) = política; sentir = afeição = estética; saber = cognição = heurística. É a partir da identificação das pragmáticas pressupostas que os comportamentos humanos podem - e devem - ser avaliados.

5. Voltemos, pois, à proposição inicial. Na prática, descrevem-se teologias de pragmática estética/política, de um lado, e teologias de pragmática heurística, de outro. As teologias de pragmática estética/política são aquelas ditas "práticas", próprias ao culto, à devoção, à "comunidade". É o que se faz nas comunidades religiosas. Em torno delas, gravitam todas as experiências religiosas, enquanto vividas como tais. A teologia-enquanto-estética é aquela dimensão subjetiva, pessoal, da experiência religiosa. A política, aquela expressão social, "eclesiástica". Lá, a intenção é "fruição" do gozo religioso. Aqui, administração das coisas religiosas. Nem lá, nem cá, está-se, em primeiro lugar, interessado em "saber" - pelo contrário, o "saber", aí, muitas, muitas vezes, é tomado como "diabólico", porque desintegrador seja do "gozo", revelado como alienação, seja do "controle", revelado como usurpação.

6. A teologia-enquanto-heurística, contudo, não está ela interessada, em primeiro lugar, nem em gozos estéticos e devoções espirituais, nem em controle de tradição, perpetuação de práticas e costumes, "salvação" de almas ou qualquer outra coisa que caracterize, aí sim, aquelas pragmáticas anteriores. A teologia-heurística quer "saber": de si, do homem, dos pensamentos do homem, da vida. Nada mais. Ela é - por isso - necessariamente iconoclasta.

7. Ora, se se leva a sério essa distinção, resulta inadmissível que religiões, hoje, considerem-se "verdadeiras", ao passo que, ao mesmo tempo, denunciem outras como "falsas". Heuristicamente, isso é absolutamente equivocado. Em termos estéticos, patológico, porque toda experiência estética é "verdadeira" - esteticamente verdadeira. Em termos políticos, presunção e violência. No campo estético, toda e qualquer expriência religiosa (ressalvadas as questões ético-legais, naturalmente) tem idêntico valor: as cerimônias do Daime têm o mesmo valor estético que a Missa do Galo. Politicamente, todas são práticas comunitárias, internas, válidas assim e por isso, e, apenas, aí. Não há nada de mais válido no congregacionalismo protestante do que no sacerdotalismo umbandista (ou católico): são práticas políticas, relativas, e só.

8. Assim, no campo estético e político, as "teologias" são obrigadas a considerarem-se mitos comunitários. Qualquer religião, hoje, que considere suas práticas estéticas e políticas como "absolutas", porta-se anacronicamente, ignora tudo quanto se aprendeu a respeito da espécie humana nos últimos séculos - seja isso por pura negligência, seja isso por política programática clerical.

9. Aí, nessa prática estética e política, aí, sim, vale uma teologia como "metáfora", ainda que isso seja muito pobre e pouco - se for só isso. Cada participante dessas práticas deve saber e reconhecer que cada crença sua, cada gesto seu, cada experiência é mito e rito, e nada mais do que isso, de modo que, num primeiro e mais raso nível, a teologia que aí se pratica é "metáfora", mas metáfora não de coisas superiores que eventualmente se cogitam existir, mas de anseios da alma e expressões sociais. Se a comunidade "brinca" de dizer metáfora o que ela aina trata, existencialmente, cmo ntlogia, ela está a enganar-se - a si mesma, a seus ouvintes - o que também é válido para "teologias" de todo tipo. Tillich, por exemplo, reveste de aparência metafótrica (no nível das palavras) uma realidade ontológica (no campo metafísico) - não há nada de realmente novo aí. Vattimo, por outro lado, já rompe, aí, sim, com a metafísica, mas, aí, está-se no campo da política, e resta saber se os "teólogos" que gostam de seguir Vattimo hão de expressar-se assim também em plena liturgia - metáforas de nada, metáforas de tradição, metáforas de gostos e costumes...

10. Já uma teologia-pesquisa, uma teologia-heurística, uma telogia enquanto "ciência humana", aí não - não há a mínima possibilidade, remota, que seja, de ela fazer-se metáfora. Essa teologia-pesquisa não borboleteia em torno de mitos, como se a manutenção do mito "Deus", do mito "Espírito", do mito "graça e pecado", traduzisse algum "conhecimento". Pelo contrário - munida, ou melhor, acompanhada das demais "ciências humanas" (e também, "naturais"), essa teologia-pesquisa é capaz de tornar pó cada um desses mitos, de denunciá-los como, eventualmente, delírio e instrumento de manipulação, sendo o caso - e o é, as mais das vezes...

11. Logo, uma teologia como ontologia só pode ser vivida enquanto mito, e, de imediato, ela se dissolve. A manutenção da ontologia metafísica na teologia é sinal de anacronismo, seja qual for a razão dessa manuteção: negligência ou estratégia. A tentativa de transformar a teologia em metáfora seria válida para as práticas reigiosas (justo lá, onde ela não se apresenta com essa roupagem, mas ainda se porta como "verdade" e "revelação" - e poder!) [uma comunidade "cristã" trocaria as salvações, as bênçãos, os exorcismos, as mágicas, os olhos virados, do "evangelho" brasleiro contemporâneo, pelo discurso abstrato-instrumental de metáforas?]. No campo da pesquisa, na academia, só há lugar para uma teologia - investigação crítica.

12. Seria desejável que as religiõs descobrissem-se em sua condição inexorável, incontornável, ineludível, de mito, todas elas. Adviria daí uma nova "era", em que aprenderíamos a manter as relações inter-religiosas niveladas por baixo, e não, por cima, como o quer, ingenuamente (?), a estratégia do "diálogo inter-religioso" (tudo é "sagrado", quando se deveria reconhecer que "tudo é antropológico" - mas mesmo aí não se educam as massas, mas se articulam discursos para as fazer conduzir melhor...).

13. Por outro lado, qualquer tentativa de fazer com que estética e política intervenham na pesquisa (e a estratégia da metáfora redunda nisso) esconde o risco de trazer para a pesquisa a desgraçada situação das religiões - rotinas pragmáticas antropologicamente cegas a querer salvar os homens.


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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