sexta-feira, 31 de julho de 2009

(2009/407) Cosmogonia e Pré-socráticos


1. "Pré-socráticos" é um termo designativo de "filósofos" (esse termo, sim, polêmico, em se tratando de pré-socráticos) que viveram antes de "Platão" (quando se fala em Sócrates, obviamente fala-se de Platão, por meio de quem se chega a saber de Sócrates). Na Graduação de Teologia, eu lera os pré-socráticos, isto é, livros a respeito deles. Sempre me pareceram muito interessantes. Mas seu testemunho é muito fragmentado, e, na maior parte das vezes, indireto.

2. Mas há um agravante. Lemos os pré-socráticos a partir da história dos efeitos da história da própria Filosofia. Assim, o ambiente em que recebemos seus testemunhos é aquele propriamente platônico-ocidental, logo, "teológico-ontológico", dito "das idéias", "conceitual", asséptico, em se tratando da matéria, de que o platonismo tem aversão...

3. Delicio-me, contudo, agora, com um livro: Os Pré-Socráticos, de Gérard Legrand (Jorge Zahar, 1991 [1987]). Talvez, mesmo sem minha tese de doutorado, a leitura me seria frutífera. Mas, depois de passar alguns meses enfiado dentro das águas cosmogônicas, ler os fragmentos pré-socráticos é revelador.

4. Do próprio livro, eis algumas afirmações reveladoras, que, se somadas às informações recolhidas em minha tese, fazem-me (sor)rir como criança: "Epimênides reúne-se aos primeiros jônicos para 'continuar' as cosmogonias babilônias e 'fenícias'" (p. 21). Ainda mais precisamente: "Ferecides de Siros] popularizou concepções que tomou emprestado as sacerdotes 'fenicios' (sabe-se que essa palavra, entre os gregos, acabara por designar os habitantes de quase todas as costas e ilhas do Mediterrâneo Oriental, exceto o Egito)" (p. 22). De Tales de Mileto: "ele situava a água na origem de tudo" (p. 27). A água! Como, agora, tudo faz sentido... As cosmogonias próximo-orientais, babilônicas, sumerianas, assírias, feníciais, ugaríticas, israelitas e judaítas, egípcias, todas, estabelecem aí, nas águas cosmogônicas, as "origens". Tales, parece adequado dizê-lo, apenas "olha" mais metafisicamnte do que cosmologicamente para essas águas. Extrai delas como que um "princípio". Mas elas já estão lá - onipresentes, nos mitos que tanto gregos quanto egípcios igualmente compartilhavam com os próximo-orientais.

5. Não se duvide. Ainda, em contexto que tanto evoca as cosmogonias babilônicas quanto o orfismo, Tales se deixa apreender: "trata-se de um mitologema cujos vestígios remontam até a Babilônica e provavelmente até os sumérios. A tradição homérica ou proto-órfica teria influenciado Tales? Não é imposível" (p. 32). Não li alhures que os egípcios gabavam-se de ter escrito nas paredes de seus templos já há três mil anos aquilo que, agora, Platão balbuciava na Grécia?

6. "Águas"... Tales: um refletidor ancestral-conceitual de antigas cosmogonias... Mas... e quanto ao Ápeiron, de Anaximandro? Aí não se está, definitivamente, fora do ambiente do mito? Bem, "no 'poema da Criação' babilônio (cujos laços com o pensamento de Mileto já vimos), a Terra está cercada pela serpente-água macho, primordial, Apsu, esposo de Tiamat, a mãe universal (que será designada por Damascius com a tradução Thálassa, mas indicando também a Lua!). Os órficos falam da mesma forma de seu Khronos com forma de dragão, esposo de Ananke', assim como Crítias. Todo esse sincretismo sugere que o tò ápeiron de Anaximandro, mesmo que ele seja apenas o predicado de uma 'substância' indeterminada, deve, antes, ser considerado sob o ângulo da temporalidade, cuja referência 'oceânia', herdada de Tales, teria sido uma 'metáfora de metáfora'" (p. 40-41).

7. É muito revelador que mesmo um tão-aparentemente conceito - Ápeiron - remeta, na verdade, ao estatuto das águas cosmogônicas, que cercam a "terra". Esse estatuto, ou seja, o fato de que se concebem as águas como permanentes em torno da terra, embaixo, em cima, dos lados, um invólucro cosmogônico, parece que ele deu alguma dor de cabeça a intérpretes desavisados. Um trecho muito revelador do livro, aquele que fala de Xenófanes de Colofão, um poeta perambulante, um rapsodo, andarilho, declamador de poemas (era a esse tipo que Platão se referia, quando mandava que o Filósofo-Governador os chutasse da Cidade Bela?), põe termo à minha reflexão:

7.1 "'os limites (ou antes: a finitude) da Terra em cima, é o que vemos a nossos pés,/ Do lado do ar. Mas em baixo, ela se estende até tocar o Ápeiron' [transcrito literalmente].

7.2 O que quer ele dizer? Não que o Mundo se estenda 'ao infinito sob nossos pés', mas simplesmente que estamos no 'centro' de uma espécie de esfera dupla. O hemisfério inferior é feito de terra, como 'elemento sólido', o hemisfério superior de ar: habitamos numa espécie de banheira, de água e terra misturadas (...) ou antes de água contornando nossa terra, como solo habitado, 'cavada' no hemisfério inferior; a parte mais baixa do hemisfério do ar orla, pois, a terra a nossos pés (é a própria definição de horizonte circular). Para Xenófanes, nossa terra é plana (mas não infinita!), enquanto que a parte mais alta do mesmo hemisfério, e a parte mais baixa do hemisfério da terra tocam o Ápeiron, que envolve toda a esfera. Ora, Empédocles não compreendeu esse modelo, e o ridiculariza (...). E Aristóteles, que lia Xenófanes através de Empédocles. não se priva de achar o velho poeta ligeiramente imbecil (...)" (p. 51). Pobre Aristóteles, lendo Xenófanes por meio de Empédocles - é o mesmo que a nossa velha Teologia Sistemática, lendo Gênesis por meio dos Pais da Igreja... Um pouco de "arqueologia" teria feito bem a ambos...

8. Mas voltemos cá aos pré-socráticos. São ditos "filósofos". Hum... Mas, a rigor, o que estão a fazer é tratar "(quase)ontologicamente" os enredos, a plástica, os mitoplasmas cosmogônicos, para os quais, em torno da terra, há, em todos os lados, "água". Um refinamento terminológico quase-conceitual - Ápeiron (Anaximandro) - ou um refinamento intelectal - "ar" (Anasímenes), - em lugar de "água" (Tales) não faz deles tão mais filósofos de que, por exemplo, o velho "Pedro" (mas dificilmente é o "velho" Pedro), de quem podemos, hoje, ouvir: "pela palavra de Deus já desde a antiguidade existiram os céus e a terra, que foi tirada da água e no meio da água subsiste" (2 Pd 3,5)...

9. Ah, divirto-me com uma Teologia Sistemática, seja "ontológica", seja "metafórica", que não quer ou não sabe ler os antigos. Vejo nela o mesmo que ocorreu na longa noite da Filosofia: sobre palavras antigas, que não podia compreender, pelo vício de olhar de lado, montou metafísicas e ontologias sofisticadíssimas, mas assim como películas cinematográficas, como Matrix, esteticamnte interessantes, no caso delas, politicamente eficientes, mas sem nenhm fundamento que não o equívoco da tradição.

10. Se há herdeiros "legítimos" dessa longa tradição cosmogônica, é a Política (em sentido forte, civilizatório) e a Ciência, empírica, a astrofísica, a física das partículas. Uma Filosofia ontológica e uma Teologia Sistemática ficam-nos como delírios formidáveis. E só. Quer dizer - delírios cegos, porque se crêem profundíssimos... e, no entanto, sem substância alguma que não a própria satisfação de dizer e ver-se crido. É, para elas, o que importa: verem-se cridas.


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

PS. Para flagrar-se o processo de abstração que resulta na sofisticadíssima - e feérica! - filosofia-teologia ocidental, basta acompanhar, cronologicamente:

1) cosmogonias próximo-orientais: Dragões/Serpentes-águas
2) Tales de Mileto - água
3) Anaximandro - "Ápeiron"
4) Anaxímenes - "ar"
5) finalmente, "lembremo-nos enfim Arquelau de Atenas (...) porque finalizou a 'dissoluão' do pensamento jônico ao identificar o ar de Anaxímens com o Noûs personificado de Anaxágoras" (p. 53). Não posso deixar de lembrar-me do "Espírito" a chocar a terra, como uma galinha, nos salões da sapientíssima teologia...

De um a cinco, vemos como foi possível, desde o mito cosmogônico, uma mudança de perspectiva, de foco, a perda de contexto funcional, resultar na abstração que se tem por "inteligente", a inventar, para si e só para si, conceitos, enfim, a Idéia platônica, vencedora, e, com isso, cuidar tratar da essência do Universo. No auge desse roteiro, olhou-se para trás e viu-se, nos dragões mesopotâmicos, mito e quimera... Ha! Ha! Ha!, mas a Filosofia toda e a Teologia Inteira, quando ontológicas e metafísicas, clarividentes e reveladas, que mais são que "estrumes" de tais dragões? Mas nem "dos dragões" - mas dos sábios que, afogados nas águas primordiais, deliraram?

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