sexta-feira, 29 de maio de 2009

(2009/309) Aquele semblante


1. Nunca saberei ao certo. Deveria perguntar, assim, de chofre? Não, não eu, não alguém com a minha personalidade. É que, em ambientes formais, eu consigo intrometer-me na formação dos alunos. Mas, fora daí, nos encontros fortuitos e esporádicos, sinto-me tolhido por uma timidez e um constrangimento provenientes da infância.

2. Hoje re-encontrei, por acaso, um ex-aluno. Talvez tenha sido meu aluno há uns, o quê?, dez anos? Talvez mais, talvez menos, não sei mais ao certo. Mas lembro-me muito de seu semblante - um ar de depressão e tristeza, de "estar perdido", continuamente. O semblante dele foi esse desde que o vi, pela primeira vez, acentuou-se, sem muita transformação, contudo, durante todo o transcurso da Graduação, e, na formatura, cuja turma levou meu nome, ele me disse hoje, e eu não lembrava, lá estava aquela fisionomia, aquela máscara de depressão viva, aquele esgar triste dos desesperançados irremediáveis.

3. Disse-me que abandonou o projeto pastoral. Ensaiei pedir a razão, mas, antes de o fazer, ele já ma adiantou: Teologia, Osvaldo, desmonta a gente. E ele se foi, triste como da primeira vez, uma aparência de extrema fraqueza e debilidade, quase canina, eu diria, desses cães de rua, cansados de pontapés e enxotamentos.

4. Há alunos que não conseguem reconstruir-se. Estão irremediavelmente perdidos, coitados. A educação castradora que tiveram, seja em casa, seja na Igreja - normalmente, nos dois cárceres - faz deles expressão bovina e heterônoma de terceiras consciências. Suas vidas inteiras estão depositadas sobre a certeza que adquiriram sobre afirmações das quais não têm a mínima idéia da origem, exceto que se matariam na defesa de sua proveniência divina. Tudo são, tudo fazem, tudo crêem em face da doutrina que decoram, que se lhes inculca. São cascas ocas, eco de dogmas catequisados, obediência servil a idéias controladoras, travestidas de divindade...

5. E, então, deparam-se com a Gradução em Teologia. Mas isso somente em poucas Graduações. A maioria não passa da extensão assassina da humanidade potencial dessas criaturas privadas da existência própria, vampirizadas por Deus e pelo Diabo, cujo corpo é o próprio cenário do Armaguedom, e cuja alma é escrava. Há, contudo, Graduações pensadas para a emancipação da consciência, que promovem a autonomia, a reflexão, a crítica. Isso - e apenas isso - é "educação". Aquilo, catequese e reprodução em série. Cemitério antropológico.

6. Todavia, quando alguns poucos, raros, mesmo, mas, nem por isso, insignificantes, alunos deparam-se com a tempestade de liberdade, apenas conseguem desconstruir-se, porque dão de cara com a obviedade de estarem aprisionados a sistemas doutrinários falsamente apresentados como "verdadeiros" e "divinos". Desconstroem tudo, mas, porque foram apenas catequisados, porque desmontaram-lhes toda a estrutura mental, não sabem reconstruir-se, não conseguem - e perdem-se.

7. Esse menino, hoje, é um deles. Descobriu-se roubado da vida, descobriu que lhe mentiram a vida toda, até aquele dia, e, contudo, descobrir isso foi dar de cara com a constatação de que lhe faltam, agora, as condições de reconstruir-se. Para ele, para esse tipo de "teólogo", a Teologia constitui uma experiência apenas negativa, iconoclasta, como tem de ser, como é, mas não conseguem, depois, municiar-se também dela para sua reconstrução pessoal - só lhes resta viver com o espelho diante da cara, sabendo que, para eles, chegou-se ao fim da linha.

8. Trabalha, agora, numa empresa de telefonia. Teologia? Queria o Mestrado, Osvaldo. Talvez, quem sabe, eu caminhe. Procure a PUC. Onde fica? Na Gávea... Ah, você terminou seu doutorado? Sim, terminei, sim, lá. É caro? Provavelmente, sim, mas o curso é subsidiado, e você não paga nada. Vai lá, faz entrevista, faz a inscrição, faz a prova. Quem sabe? É, vou ver...

9. Bem, quem sabe ainda não é tempo de a Teologia fazer a segunda parte de sua tarefa pedagógica? Sem desconstruir-se, ninguém faz Teologia com seriedade, vindo de onde vem. Mas a tarefa da Teologia não pode ser apenas desconstruir ou permitir que se desconstrua o sujeito - deve ser mais nobre: deve promover todos os meios para que o sujeito de refaça, se recrie. Isso - recriar. Teologia é cosmogonia pedagógica. Mas há sujeitos, meu Deus, tão destruídos por dentro, que, uma vez desonstruídos, fica, apenas, um caos imenso e insano... ah, sim, e dor, muita dor.


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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