segunda-feira, 25 de maio de 2009

(2009/294) O que dizer, então, das narrativas?


1. Uma polêmica ocupa o cenário político, histórico e artístico da Itália. Trata-se de uma polêmica artística, porque seu alvo é uma escultura atribuída a Michelângelo, um "Cristo crucificado", atualmente sem a cruz, tudo indica, perdida. É histórica, porque a autoria é asseverada por uns e contestada veementemente por outros. É política, porque o Governo italiano acaba de pagar US$ 4 milhões pela escultura de madeira, de cerca de quarenta centímetros, agora exposta no Museu de Florença (leia aqui, na BBC Brasil - Jesus de Michelângelo?).

2. Cristina Acidini, Diretora do museu reconhece que não há documentos que atestem a autoria de Michelângelo, mas argumenta que muitas outras obras tão pouco o teriam - o que, então, legitimaria a declaração, quer do museu, quer do Governo italiano, de que se trate, assim, mesmo sem documentos, de obra veríssima do veríssimo Michelângelo (assista ao vídeo da BBC Brasil). Como é boa a vida livre dos cabrestos indiciários...

3. Na contra-mão da apologia michelangeliana, Francesco Gaglioti e Tomaso Mantanari, ambos, historiadores da arte, negam categoricamente que haja alguma relação entre a escultura e o gênio renascentista.

4. Mas a decisão é política - pagaram-se os milhões e pronto. Logo teremos, aí, a mesma síndrome da "comunidade de Qunram", tornada essênica por força de muita propaganda e repetição do mantra hegemônico, a despeito das severas, agudas e relevantes críticas de não poucos arqueólogos israelenses, bem como de Norman Golb.

5. No caso de Qunram, considero um "caso típico" de agiornamento hermenêutico o fato de pulularem, mas em quantidade exorbitante e assustadora, os artigos, os livros, as palestras que meramente aplicam a teoria, como se ela fosse um "dado" da realidade. Não se discute mais a questão - ela virou "verdade". A teoria é tomada pela realidade, e os críticos são considerados incovenientes... Lembra-me o "uso" - e isso alegadamente para fugir do "positivismo" (ah, essas estratégias de fundilhos rasgados...) - das "teorias sociológicas" sobre o real: como se aplicar uma teoria sobre o real mudasse o fato de que é o real que deve constituir o suporte crítico da pesquisa (salvo, claro, num exercicionismo espetaculoso de teorias...): se não posso ter acesso crítico ao real, como vu criticar a aplicação de "teorias sociológicas" sobre ele? E vamos que vamos...

6. Em outro campo, essa situação heuristicamente reveladora do papel da política na pesquisa leva-me a refletir sobre as declarações de autoria de certas porções das Escrituras, tornadas "lugar-comum" e repetidas como se fossem "dados": uma prioridade cronológica de "J" a "P", para usar uma terminologia em desuso - penso aqui na tese ainda em voga de que Gn 2,4b3-24 seja anterior a Gn 1,1-2,4a, e não é, é posterior (hipótese minha, mas, também, de outros pesquisadores - e nao cheguei a ela por meio deles, registre-se, apenas os descobri, depois de eu mesmo a ter intuido a partir de indícios veterotestamentários), uma datação "exílica" para o Dêutero-Isaías (Is 40-55 - Bouzon e eu discutíamos muito essa questão, ele, a favor da datação exílica, eu, contra, e os alunos, abismados de eu ter coragem de dizer que não concordava com o saudoso mestre, como se isso fosse pecado de lesa-academia: veja o tipo de mente que fabricamos!), uma dependência "helênica" do Evangelho de João, e isso para não falar nas autorias e datações que a tradição alega para os livros bíblicos - 95% equivocadas -, por meo de cuja ignorância, contudo, anda somos, aqui e ali, caluniados.

7. A entrada do Governo italiano na "disputa" (isto é, na decisão) pela autoria da estátua do Cristo crucificado há de, certamente, mover todas as engrenagens no sentido de transfomar em "fato" a contestada autoria renascentista. Eu diria que tanto faz - em dias de pós-modernidade, tanto faz ter sido o Garibaldo, da Vila Sésamo, ou Michelângelo - não há fatos, só interpretação de fatos. Vattimo deve estar à porta do museu, com cartaz na mão e tudo, e Nietasche a dar voltas no túmulo... E, se nessa situação fluida e viscosa, você pode dizer que foi Michelângelo, pra que perder tempo com o Garibaldo? Quer dizer, tempo e bilheteria...


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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