1. Vou lendo o interessantíssimo livro de Christopher Hill, A Bíblia Inglesa e as Revoluções do Século XVII (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003). É um livro imperdível. Mas o assunto que me traz aqui é outro, ligado ao fato de que Hill foi um dos maiores historiadores marxistas da Inglaterra do século XX - nasceu em 1912 e morreu em 2003.
2. Logo após a Guerra, em 1947, o mesmo Christopher Hill, então com 35 anos, publicava Lenin and the Russian Revolution. Eram os anos da "libertação" da Europa pelo conclave Rússia/Inglaterra/Estados Unidos da América. A Rússia estava na moda. Dividira o despojo da guerra com a outra potência, esta, capitalista. A Rússia, não.
3. Assim se expressava Hill a respeito da Rússia: "volto sempre a esse aspecto da Revolução Russa - de que ela soergueu os pobres e oprimidos, melhorando o quinhão deles na vida cotidiana. Isto é o que mais me impressiona, nos atuais relatórios e informes da revolução, e é provavelmente o que constituirá o seu reflexo mais extenso e duradouro" (Christopher Hill, Lênin e a Revolução Russa, 2 ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1967, p. 179-180). Ah, os informes...
4. Em 1947, já havia 29 anos que o sistema Gulag - Administração Geral dos Campos de Trabalho Correcional e Colônias - funcionava na União Soviética. Uma ampla rede de campos de trabalhos forçados para prisioneiros políticos. Milhões de pessoas morreram nesses campos - enquanto Hill lia os "informes". Um de seus famosos prisioneiros, Alexander Soljenitsin escreveu-lhe uma história - Arquipélago Gulag. Enquanto, religiosamente, Hill lê os informes, Soljenitsin cumpre pena...
5. Já em 1947 corriam as informações. Mas a esquerda européia preferia crer numa Rússia libertadora, salvadora, do que acreditá-la despótica, mil vezes mais carnívora do que o sistema dos czares, que a Revolução derrubara. A vontade de não descrer perpetuar-se-á ainda por anos: Edgar Morin diz que "durante um ano, implorei à minha amiga C. que lesse Arquipélago Gulag. Ela não tinha tempo, mas o conseguia para ler Guattari e Lacan" (Edgar Morin, Para Sair do Século XX, p. 44). E Hill, em 1947, celebra o cuidado que a Rússia tem com os oprimidos! "A Revolução Russa demonstrou que os habitantes comuns da terra (e até dos países mais atrasados) podem assumir o poder e governar com muito mais eficácia do que os seus ditos 'superiores'" (Christopher Hill, Lênin e a Revolução Russa, p. 178). Crer, mesmo para um marxista, é muito, muito perigoso. A fé, em todos os sentidos, cega.
6. Ah, a força do engajamento! Que força de cegueira auto-permitida. Como a idéia-salvação cega! Os engajados desejando a cegueira, e os engajadores promovendo a cegueira: "podemos estar certos, agora, de que a China e a União Soviética não solucionaram seus problemas alimentares vitais suprimindo o pluripartidarismo e monopolizando os mídia: eles impediram que se falasse deles e nos impediram de tomar consciência do fato" (Edgar Morin, Para Sair do Século XX, p. 207). E Hill vem falar de "relatórios e informes"...
7. É preciso muito cuidado com a vontade de crer. É preciso submeter o desejo de crer à abstinência de fé, até que o corpo trema, e se dê conta do vício de crer, da hipnose químico-cerebral da crença. Por isso quero uma teologia crítica - e crítica mesmo, que duvide de si mesma, que se faça passar pelas áscuas da crítica, e se empobreça à demasia, até o limite de sua combustão, que se faça dúvida, que se faça suspeita, e, nunca mais, cheque em branco. Por trás de toda fé-cega, de todo engajamento incondicional, jaz o espectro do terror e da morte, à espreita, a vontade de ser enganado e de enganar, orque enganar é o preço para não se revelar enganado. Se o Deus da vez mandar, o sangue rolará farto, para delícia da divindade.
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
PS1. Um "caso" ilustrativo, by José Saramago.
2. Logo após a Guerra, em 1947, o mesmo Christopher Hill, então com 35 anos, publicava Lenin and the Russian Revolution. Eram os anos da "libertação" da Europa pelo conclave Rússia/Inglaterra/Estados Unidos da América. A Rússia estava na moda. Dividira o despojo da guerra com a outra potência, esta, capitalista. A Rússia, não.
3. Assim se expressava Hill a respeito da Rússia: "volto sempre a esse aspecto da Revolução Russa - de que ela soergueu os pobres e oprimidos, melhorando o quinhão deles na vida cotidiana. Isto é o que mais me impressiona, nos atuais relatórios e informes da revolução, e é provavelmente o que constituirá o seu reflexo mais extenso e duradouro" (Christopher Hill, Lênin e a Revolução Russa, 2 ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1967, p. 179-180). Ah, os informes...
4. Em 1947, já havia 29 anos que o sistema Gulag - Administração Geral dos Campos de Trabalho Correcional e Colônias - funcionava na União Soviética. Uma ampla rede de campos de trabalhos forçados para prisioneiros políticos. Milhões de pessoas morreram nesses campos - enquanto Hill lia os "informes". Um de seus famosos prisioneiros, Alexander Soljenitsin escreveu-lhe uma história - Arquipélago Gulag. Enquanto, religiosamente, Hill lê os informes, Soljenitsin cumpre pena...
5. Já em 1947 corriam as informações. Mas a esquerda européia preferia crer numa Rússia libertadora, salvadora, do que acreditá-la despótica, mil vezes mais carnívora do que o sistema dos czares, que a Revolução derrubara. A vontade de não descrer perpetuar-se-á ainda por anos: Edgar Morin diz que "durante um ano, implorei à minha amiga C. que lesse Arquipélago Gulag. Ela não tinha tempo, mas o conseguia para ler Guattari e Lacan" (Edgar Morin, Para Sair do Século XX, p. 44). E Hill, em 1947, celebra o cuidado que a Rússia tem com os oprimidos! "A Revolução Russa demonstrou que os habitantes comuns da terra (e até dos países mais atrasados) podem assumir o poder e governar com muito mais eficácia do que os seus ditos 'superiores'" (Christopher Hill, Lênin e a Revolução Russa, p. 178). Crer, mesmo para um marxista, é muito, muito perigoso. A fé, em todos os sentidos, cega.
6. Ah, a força do engajamento! Que força de cegueira auto-permitida. Como a idéia-salvação cega! Os engajados desejando a cegueira, e os engajadores promovendo a cegueira: "podemos estar certos, agora, de que a China e a União Soviética não solucionaram seus problemas alimentares vitais suprimindo o pluripartidarismo e monopolizando os mídia: eles impediram que se falasse deles e nos impediram de tomar consciência do fato" (Edgar Morin, Para Sair do Século XX, p. 207). E Hill vem falar de "relatórios e informes"...
7. É preciso muito cuidado com a vontade de crer. É preciso submeter o desejo de crer à abstinência de fé, até que o corpo trema, e se dê conta do vício de crer, da hipnose químico-cerebral da crença. Por isso quero uma teologia crítica - e crítica mesmo, que duvide de si mesma, que se faça passar pelas áscuas da crítica, e se empobreça à demasia, até o limite de sua combustão, que se faça dúvida, que se faça suspeita, e, nunca mais, cheque em branco. Por trás de toda fé-cega, de todo engajamento incondicional, jaz o espectro do terror e da morte, à espreita, a vontade de ser enganado e de enganar, orque enganar é o preço para não se revelar enganado. Se o Deus da vez mandar, o sangue rolará farto, para delícia da divindade.
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
PS1. Um "caso" ilustrativo, by José Saramago.
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