sexta-feira, 3 de abril de 2009

(2009/134) De um Jesus guloso demais


1. Há um desacerto evidente e latente entre o espectro cultural brasileiro e o Evangelho. O Brasil tende a uma cultura de miscigenação - conforme a declaração que Jorge Mautner reputa a Walt Withman: "o vértice da humanidade será o Brasil" (cf. aqui, aqui e/ou aqui): "eu apenas quero lembrar que José Bonifácio de Andrada e Silva, em l823, disse que o que nos diferencia como nação perante as outras nações do mundo é o fato de sermos a amálgama. E amálgama é mais que mistura, que miscigenação, é uma constante reinterpretação e recriação. Lembro ainda que o maior exaltador dos EUA e da democracia norte-americana, o poeta ufanista e gênio, Walt Whitman, disse espantosamente que 'o vértice da humanidade será o Brasil'".

2. Fala-se, aí, da característica desse Brasil sem cor e, contudo, por isso, colorido - Brasil preto, Brasil branco, Brasil amarelo, Brasil vermelho, Brasis mamelucos, cafusos, mulatos, de pardos, morenos e branquelos: o tipo brasileiro é, rigorosamente, aquele sem-tipo. Olhar um hindu e reconhecê-lo pela marca hindu, um nórdico europeu, inconfundível, um oriental, um ameríndio sul-amaricano e andino, um oceânico, um africano - mas, um brasileiro se reconhece, justamente, pela ausência de estereótipo, o que, em si, pelo amálgama em que isso se converte, é o estereótipo. Por eliminação das marcas geo-culturais, reconhece-se o brasileiro.

3. No fundo dessa mistura perpetrada pelos coitos interraciais - ah, o sexo sem fronteiras como criador de um mundo! - instala-se um caldo, um óleo de culturas, todas elas mais ou menos entrechocadas, com as resistêrncias de fronteira que são sempre necessárias para a manutenção da diferença dentro do quadro "caótico". A religião se mistura. A música se mistura. O esporte. Ser Brasil é ser misturado. Quando cada brasileiro e brasileira deitaram juntos e juntos conceberam a mistura, não foi apenas líquidos corporais que trocaram, mas, sobretudo, tradições e culturas, passado e futuro, dor e saudade, esperança e utopia - religião, sobretudo. Não há biologia humana sem cultura humana, não há parto sem música e poesia, conquanto possam ser fúnebres as notas.

4. E, no entanto, uma nota destoa aí - o Evangelho. Na terça-feira, durante seu pronunciamento de despedida da condição de Diretor Geral do Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil, o Prof. Dr. - nesse momento, a rigor, "pastor" - Israel Belo de Azevedo, encerrando sua pregação, afirmou que o tema do século XXI, o seu desafio, será o convencimento - do mundo! - da singularidade de Jesus Cristo. E foi claro: não uma singularidade permitida (republicana!) a cristãos que a isso se dediquem, por gosto, mas uma singularidade que deve ser reconhecida por todos, o que implica numa esperança missiológica, missionária e catequética. Nada mais sublimemente "cristão" do que tal pronunciamento, nada mais ortodoxo, nada mais "correto".

5. E, no entanto, eu fiquei triste. Sim, triste, porque não posso conceber que o destino do mundo seja deixar-se pintar por uma única tinta religiosa. Não posso conceber que um projeto de um grupo de pessoas deva se tornar, por força desse grupo, projeto do mundo, se esse projeto entende-se como a submissão de todo o mundo a essa idéia, a esse padrão, a essa consciência, a essa cultura. Que tenha ela lá os seus valores, a sua validade, o que tem de positivo - e tem! -, mas o empobrecimento da espécie seria avassalador. Como imaginar um Brasil "cristão"? Sobretudo quando sabemos que os cristianismos concretos - as utopias cristãs apenas acendem a caldeira da produção dos cristianismos concretos - são, inescapavelmente, uniformizantes, demonizantes do diferente, empobrecedores de temas. O movimento neo-pentecostal não é, antes de tudo, a demonização da cultura popular brasileira sob o tema cristão? Não consiste em usar as armas da cultura popular brasileira contra ela, a serviço de "Jesus"? E os cristãos tradicionais, conquanto recriminem parte do método e do conteúdo desse movimento, não acatam, perfeitamente, seu discurso de fundo: Jesus, só Jesus, e mais nada nem ninguém? Não é isso, contudo, o mesmo que dizia Ciro, tendo pela mão um Yahweh para isso servil - apenas Yahweh, só Yahweh, e nenhum outro? Não é isso - política?

6. Nunca um discurso cristão me abateu tanto. Confesso que cheguei a "orar", pedindo a Deus perdão por aquele momento. Também porque, se ele se consuma, o amálgama brasileiro desaparece, porque nos tornamos uma pasta homogênea, empobrecida em tema, em forma, em conteúdo, em cor. Cá no meu coração vai bem a idéia republicana de permitir ao cristão ser cristão, mas vai muito mal a idéia de que o cristão deve querer que todos sejam cristãos, e mais, de pôr esse projeto acima, por exemplo, da superação da fome do mundo no século XXI.

7. Eu desejaria que, no campo religioso, Jesus tivesse o direito de estar naqueles espaços em que ele próprio toleraria pudessem e devessem estar um Preto-Velho, um espírito de luz ou um orixá. Nem falo por mim, porque a mim, hoje, basta-me, no campo estético e mítico, uma idéia difusa e inefável de "Deus", já por agora difícil de converter-se numa liturgia de calendário, conquanto ainda capaqz de levar-me ao marejar dos olhos (o que, contudo, em ermos civilizatórios - e é disso que se trata, não significa nada). Todavia, quero crer que pessoas outras, com vocação para o engajamento na liturgia, queiram ver respeistadas suas tradições, os seus deuses, os seus santos. Nesse caso, tomo-lhes o partido, contra a minha própria tradição cristã, exclusivista, ciumenta, gulosa - pecado mortal, a gula. E, meu bom Jesus, seja menos guloso, está bem? Não estraga, não, Jesus, essa maravilha de cultura que produzimos aqui - será, quando menos, trágico que, depois de nos trilhar na roda, seja ele, o Cristianismo, afinal, o manto de um povo parido em dor.


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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