sábado, 7 de março de 2009

(2009/065) Pathos divino e fatos legais


1. O senhor arcebispo vai a público e informa haver condenado ao inferno a família, os médicos e a vítima envolvidos no caso do aborto da menina de nove anos, estuprada pelo padrasto, esse ainda no céu - é que o corpo vivo e parido da menina é estuprável, Deus há de entender essas questões de pulsões córtico-penianas, enquanto o "corpo" informe e inato, não-parido e inominado do feto é intocável, a tal ponto de o perdão divino ser, em face do "pecado" cometido, não-cogitável. Mistérios da Razão divina, dos Valores divinos, da Vontade divina, mistérios da pragmática manipulável de uma Idéia Política. Sendo assim, pedófilos, sumamente padres, e estupradores, quaisquer que sejam, estão níveis acima na escala dos valores teológicos. O Vaticano, bem como a CNBB, sou informado por Wálter Fanganiello Maierovitch, aprovaram a atitude (cínica) do senhor religioso e eclesiástico - difícil conter os adjetivos.

2. Nos termos da exposição pública do caso, sob a ótica da legislação e da justiça brasileiras, bem-feito!, o senhor arcebispo pode ser processado e condenado a sanção pecuniária. A legislação, ainda que de 1940, é laica, e o "valor" (?) religioso da "igreja" pesa tanto quanto o "valor" da terra dos duendes da Xuxa, quando o caso é a prescrição laica das normas sociais. Nesse caso, a legislação tem, já, quase setenta anos, mas não foi redigida no "Cativeiro Babilônico" (o "túmulo", pressuposto pela Renascença) - antes, é o espírito laico que a rege, de modo que ela já prevê o aborto em casos de risco de vida para a mãe e em caso de estupro. No caso da menina, valem as duas excepcionalidades legais.

3. Além disso, continua Maierovitch, quando o senhor arqui-sacerdote vai a público e proclama a excomunhão de pessoas, ele age como se o Brasil, de modo natural, fosse, todo ele, sujeito aos valores e às normas da "igreja" - e da igreja dele! A despeito de ser ridícula (a crença em) a excomunhão, patética, medieval e anacrônica, uma estupidez da fé eclesiástica herdada do coração do atraso, ela, contudo, fere a dignidade pessoal dos envolvidos, pelo "significado" pretenso e retórico que a "bula" contém, uma depreciação pública do valor e do caráter, do estado e da vida da pessoa. Se não fosse o caso concreto, era para darem-se gargalhadas na cara aparvalhada do digníssimo representente de Deus (puf!), mas, uma vez que se trata de um gesto sobretudo político, é politicamente que a questão deve ser tratada e resolvida - nas barras da justiça!

4. Mas isso é o que Maierovitch sozinho já disse, eu só repito porque concordo em número e grau. O que aqui me traz é um gotejar de plástico quente a que exponho a idéia do "pathos divino" - quem há de negar que é o "pathos divino" que move esse doutrinal juiz? Somente "Deus" é capaz de condenar uma alma, e não a outra, e, para isso, recorrer a artifícios de retórica - e, exatamente como Pondé afirma da teologia de Heschel, o "profeta" é aquele que sabe o que Deus pensa, descrição perfeita do senhor vigário excomungador, porque é por que ele sabe o que Deus pensa - mercê do pathos divino que lhe vai nas tripas -, que ele excomunga. No excomungar do arcebispo, é Deus que excomunga, e é isso a que se resume a retórica do pathos divino.

5. Naturalmente que um defensor profético do pathos divino há de reclamar de meu abuso analógico - alto lá, Osvaldo, que isso que esse arcebispo fez nada tem do pathos divino, é pura arrogância política... Ah é? Então quer dizer que o pathos divino, além de mensurável, pode ser identificado por meio de um bafômetro? Há um critério crítico para o pathos divino? É isso? E qual é? A ética pessoal? Ah, sei. Vejamos se entendi: quando a ética aplicada é a minha, então ela se põe no nível extático do pathos divino, ela é divina, é "patológica", a paixão que a move provem da próstata de Deus! Por outro lado, quando é a ética do outro, a mim estranha, então não é da próstata de Deus que ela provém, mas do cu do diabo... Quando eu tiver suficientes reais para comprar esse bafômetro, faço-me teólogo!, e vou bafejar as faces divinas...

6. Também já os que se doem da menina, da família, dor humana, e da situação dos médicos, dor legal, hão de sentirem-se tomados de "pathos divino", a pleitear justiça divina contra a opressão dos poderosos etc., uma teologia de esquerda que é a cara de sua mãe, a teologia de direita, cada qual arrimando-se na usurpação do bom senso alheio, a fazer crer que somente Deus é fundamento possível para a ética humana...

7. "Pathos divino" não passa de uma síndrome megalomaníaca de se ser e sentir o centro do mundo, de se considerar que o olho que vê é o olho do mundo, uma ilusão neurótica infantil, ora cuidada "boa" e "santa", ora denunciada como "demoníaca", conquanto o critério seja sempre o umbigo do juiz.

8. O mais cômico da defesa do pathos divino é que tal fenômeno se dá animado por uma profunda nostalgia medieval, conquanto o seja também por meio de uma crítica aparentemente profética do sacerdotalismo eclesiástico - guerra em cujo front e sob o cheiro de cujo sangue se perde a capacidade de ver que, num e noutro caso, é a alienação e o mito que controlam não apenas as mentes, mas também os corpos. Naturalmente que isso numa perspectiva humana, demasiado humana...


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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