sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

(2009/028) Tillich e Buber


1. Quando escrevi minha crítica à ultima conferência de Paul Tillich (aqui ou aqui), que ele entitulou “A Significação da História das Religiões para o Teólogo Sistemático”, achei conveniente mencionar um episódio da carreira do teólogo das "correlações", relatado por John Dourley no artigo da Correlatio, "Substância Católica e Princípio Protestante: Tillich e o diálogo inter-religioso", a respeito da crítica que lhe teria feito o então colega de Harvard, Cantwell Smith, acusando-o de um "pensamento de gueto", a que John Dourley se refere como "provincianismo". Naquele contexto, julguei oportuno fazê-lo, uma vez que, na "contra-mão" da recepção/do encaminhamento da teologia de Tillich como uma "dissidência" do conservadorismo - por conta de sua estratégia retórica das correlações (mas, para o próprio Tillich, sua "luta", seu "diálogo, era com e contra a secularização), eu o via, e vejo ainda, como o "último teólogo ontológico" - o que quer dizer "platônico". Daí ser perfeita a classificação de sua teologia como "provinciana" - e não no sentido de ela ser "caipira", mas no sentido de ela manifestar-se a partir de uma base epistemológica restrita, "de partido" - ou, como quis Cantwell Smith, "de gueto". Quem fala, em Tillich, não é Tillich, mas "a" Teologia, a mesma, desde Platão, Paulo, Agostinho, Lutero/Calvino e Barth. O que Tillich tenta, e nisso terá seus méritos reconhecidos, é dar a essa mesma Teologia uma aparência palatável ao espírito acadêmico, assim como, sem tirar nem pôr, essa mesma Teologia, a mesmíssima, sem exceções, foi transformada, por Bultmann, num existencialismo miticamente a-mítico. A novidade do velho odre... (Mas essa da desmitologização de Bultamnn é ótima...!).

2. Outro dia, meu amigo Haroldo mencionou, aqui, Buber, o famoso teólogo/filósofo judeu (teólogos/filósofos como Buber são como Platão, não é possível separar onde começa o teólogo e termina o filósofo, e vice-versa, porque sua Filosofia não passa de Teologia, com todas as graves implicações - é o caso, também, de Lévinas e, no outro espectro, dos "filósofos" cristãos, porque, a rigor, são, todos, homens de partido). Eu reagi, porque já escrevera alguma coisa sobre o livrinho que Haroldo comentava, Eclipse de Deus, e considerava que a posição de Buber persistia aquela da apologética da fé, legítima quando se decidiu que esse é o jogo, mas "imprestável" - obrigatória e metodologicamente imprestável -, quando o jogo é a investigação heurística da realidade.

3. Pois bem, agora, lendo Mészáros, encontro uma observação sua a respeito de Buber que parece reforçar minha "leitura". Numa página excepcionalmente lúcida, Mészáros fala sobre a tradição "judaica" na condição de "marginal", e das conseqüências disso para aqueles que, judeus, enveredaram pela filosofia. Segundo Mészáros, os filósofos marginais judeus caracterizam-se por uma dupla "crítica" - 1) contra a sociedade hegemônica, que "marginaliza" a comunidade judaica, e 2) contra a própria tradição judaica, considerada, então, como "estreita". Nesse ponto do argumento, Mészáros refere-se a Buber:

3.1 "Muitos outros, de Moses Hess a Martin Buber, devido ao caráter particularista de suas perspectivas - ou, em outras palavras, devido à sua incapacidade de se emanciparem da 'estreiteza judaica' -, formularam suas opiniões em termos de utopias de segunda classe, provincianas" (István Mészáros, A Teoria da Alienação em Marx, Boitempo: 2006 [1970], p. 72).

4. Pensar provincianamente é pensar a partir não apenas de uma epistemologia "particularista" - a fé judaica, para Buber, a fé cristã, para Tillich, ambos, segundo críticos seus, por isso provincianos -, mas, ao mesmo tempo, na defesa de partidarismos da margem ou do centro (não me parece apropriado considerar o provincianismo de Tillich como "marginal", um "protestante" num país protestante, ainda que o conservadorismo literalista e quase-fundamentalista permeie aquela cultura). Naturalmente que é a própria posição de "partido" a responsável pela eleição daquela epistemologia "particularista". Tillich e Buber não podem - não são livres para tanto - pensar de forma epistemologicamente franca e universal, porque isso desintegraria suas respectivas posições "tradicionais", e, enquanto teólogos, e teólogo confessionais, são o que são, a boca atualizante - para determinado espectro social - da "tradição".

5. O que ocorre com homens como Tillich e Buber é que, a despeito de sua posição comprometida e comprometedora - porque arrastam consigo uma multidão, muitos dos quais, contudo, "crendo" caminharem na outra margem do rio do conservadorismo, quando, a rigor, sequer molharam os pés num tímido atravessar do leito -, são homens de inteligência rara, muito rara, e logram aproximar-se da modernidade como corvos no milharal, a bicar aqui e ali, sementes interessantes. Mas não são do milharal. São corvos. Vivem a voar, sem a raiz fincada na terra fértil e prenha. Não são modernos. São teólogos!

6. Nietzsche disse, em O Anticristo, que todo bom teólogo é um mal filólogo. Sim, sim, e precisamente porque sua epistemologia não pode permitir que a leitura seja, no final das contas, seu coveiro.


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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