quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

(2009/027) Carne, corpo - exegese


1. Deixem-me dizer o que me encanta em Carlo Ginzburg, Domenico Losurdo, István Mészáros - eles são, acima de qualquer outra coisa, leitores e exegetas, e, por isso!, historiadores. Eles acreditam na leitura/exegese, na crítica histórica, na reconstrução do sentido de um texto enquanto objetivação da consciência de seu escritor, seja um Nietzsche, seja um Marx, sejam as transcrições inquisitoriais a respeito de um por outro meio ignorado fabricante de queijo da Itália medieval. Eles são caçadores, e crêem na caça! Eles são investigadores, e crêem na investigação! Eles são historiadores no pleno sentido técnico-acadêmico do termo. Eu creio nisso. Eu faço/tento fazer isso.

2. Por isso sou medicinalmente vacinado contra esses costumes de dissolução da materialidade histórica por meio de retóricas aguadas, de prestidigitações e malabarismos verborrágicos, que podem encantar até teólogos tradicionais, talvez porque haja, aí, efetiva relação entre o que se cria, então, e o que se diz ser "jogo de palavras", agora. Essa versão de uma pós-modernidade em que só há fantamas, um platonismo cínico, um ultra-platonismo (a matéria era má, para ele, mas, ao menos, ele cria na sua realidade!), uma desmaterialização da vida, que, a meu ver e gosto, põe em suspeição até a sexualidade dos envolvidos. Não, devagar, leitores! Não me refiro aqui á opção sexual, porque até para a homossexualidade há que se ter libido. Refiro-me à desmaterialização da matéria, a descorporificação do corpo, e a uma deslibidinização da libido, uma supressão do desejo, de tudo que é úmido, morno e túrgido, porque como alguém pode tocar a carne, e, depois, brincar de pós-modernidade? Tese: terá tocado, e não gostado.

3. Salvo se tudo não passa de pantomina de carnaval, com a ressalva de que o calendário foi rasgado, e a fantasia invade o ano todo. Contudo, um carnaval de nada, de pó, não, nem de pó, que de um pouco de pó, diz-se, fez-se o homem, essa matéria que anda, esse corpo que come, bebe, creira e tem cheiro, faz amor e guerra, que o homem não é essa coisa fantasmagórica que queria o dualismo platônico e o quer, inteiro, essa blasfêmia pós-moderna, o homem é carbono com pernas, as quais, escrevam aí, também movem-se por força do carbono. Nietzsche já suspeitava. Postula-se, hoje.

4. Por isso gosto daqueles senhores. Estou louco para encontrar "senhoras" assim também. Aliás, é um vácuo em minha rede de leituras - preciso encontrar as "senhoras", mulheres que escrevem desde o útero, que escrevem com a terra, como Gizburg, Mészáros e Losurdo. Por isso gosto deles, porque vão lá atrás, no caixote do tempo, tempo material, concreto, registrado, objetivado, concretizado, plasmado, fixo, não no seu todo, claro, que a História não é o todo, mas um conjunto de partes, partes fixas, se fixadas na objetivação da consciência comunicante, performativa, informativa.

5. Marx, para Mészáros, não é uma massa de vidraceiro, que, quando criança, brincava eu de dar formato à altura de minha imaginação e arte. Não! Para Losurdo, Nietzsche é fixo, objetivado, naquilo que escreveu, que disse. Ora bolas, se disse e desdisse, isso é tão humano quanto qualquer um de nós, e até isso será pescado na rede. Mas é aquele Nietzsche "real", "verdadeiro", "histórico", aquele que bebia da água européia e urinava depois, Nietzsdche homem, que fala, diz, e diz isso, quando é isso, e aquilo, quando é aquilo, esforço de caça, como a do ogro de Bloch, o ogro da lenda, cuja caça é a carne humana. Ah, um Nietzsche espectro, um Nietzsche jargão, um Nietzsche bonequinho-de-montar, uma teoria que faz de Nietzsche o que eu quero que ele seja, às favas! Masturbação talvez seja boa para jovens. No entanto, o sexo conjugal torna-o bastante infantil. E, todavia, quanta masturbação explícita em páginas interminpaveis da "pesquisa". Não resistem a um bom exorcismo...

6. Certamente que a tentativa daqueles senhores de reconstruir, objetivamente - aqui os apressados, as aves de mau agouro, apontarão o dedo adunco, a dizer: ah lá, é positivista, o infeliz. Tolos. Objetividade não significa imparcialidade assegurada. Mas suprima-se a objetividade, e eis a ciência, toda ela, inteira, na lata do lixo. Sem objetividade, sem crítica, como o prefere Popper, o conhecimento humano rui, acaba. Assim sendo, o desejo erótico que move a mão, o olho, o nariz, a boca, o ouvido do historiador, do exegeta, da caçador, é a objetividade do outro, o corpo, a vida concreta, materizalizada, e não uma qualquer coisa outra. É aquela materialidade, com a qual se volta, sim - ah, é é isso que arrasa, é isso que levanta a ira e a indignação dos mágicos, dos fazedores de bonoquinhos de vidro -, se volta, sim, desde lá, para desmentir a verborragia "tradicional" dos ingênuos, dos de má fé, dos papagaios. Sempre hipoteticamente. Mas na arena. Nada de "cada um com sua verdade", quando a verdade constitui-se na concretização de um evento, uma singularidade, um dito, isso, mas não aquilo.

7. A exegese tem essa grande vantagem - é iconoclasta. Não é? Não é exegese. Não há nada - escrevam aí -, nada, rigorosamente nada na "tradição" que sobreviva a uma confrontação exegética - falo de exegese histórico-crítica, histórico-social, não das acomodações políticas e teológico-alegóricas da plástica passiva da narrativa. Nada. Nem no Velho, nem no Novo. Quem em casa se sente nesses ambientes, não viajou para lá, mas trouxe, escravo, cada parágrafo, cada verso, e o tem amarrado pelo calcanhar à bula doutrinária do dia. Mas aquela terra, ah, ela é estranha, de pó, e selvagem, de feras, outro mundo, outra vida, outras palavras, e é necessário entrar lá com "ciência" e "sabedoria", sabendo dos feitiços e das fórmulas de encantamento adequadas, porque a terra do passado jaz sepulta na retina do presente - exegese é exumação de cadáver, goste-se disso ou não. Pouco importa.

8. Mas a teologia não quer cadávares - quer "vida", ela diz. Aí põe as próprias tripas sobre a narrativa, porque o que ela chama vida é apenas seu modo de viver, e ela vê-se, sempre, a si mesma, é seu pecado, que aprendeu por tradição. Não sabe outra coisa. Nem pode (quando o teólogo diz que pode, saiu da tradição, e sabe-se alguma outra coisa que não mais teólogo da tradição - eventualmente, uma fraude, contudo). O historiador, o exegeta, o caçador sai é de sua vila, mete-se no mato, e se tem de pegar o coelho, não é o gato que trará, mas o coelho. E morto! Para comê-lo, bem assado, que só o ogro há de comer cru, o sangue ainda a escorrer. O exegeta é mais civilizado, conquanto tenha na besta-fera seu ancestral mais nobre.

9. Por isso, Mészáros, por isso, Losurdo, por isso, Ginzburg, or isso, Haroldo (Jimmy não sei se evoca mais...), solto meus cabelos, brado meu grito de guerra, empunho a clava ôgrica e mergulho na noite dos tempos. E, porque os encontro, tenho a alma lavada, a profissão, justificada, o olhar, purificado. Tenho irmãos. Pena que não tão exatamente entre os domésticos. Também Haroldo, agora, é "historiador"! A Teologia me disse que anda a coçar a cabeça...


OSVALDO LUIZ RIBIEIRO

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