quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

(2009/011) Mas mesmo esse Tu...


1. Que bom que tuas férias acabaram. Foram egoístas, elas, conquanto necessárias, e, porque necessárias, cá compreendêmo-las - e a ti. Mas, também cá entre nós, elas são um roubo que tu nos fazes de ti. Roubo forçado. Que, felizmente, passou, acabou. De novo: que bom.

2. Seria sempre bom que eu soubesse, Haroldo, o ponto exato em que tu discordas de algum pensamento meu - nem que seja do todo. Não porque o objetivo aqui seja o consenso, não, não é, mas para eu possa retornar àquele ponto e certificar-me de que, a despeito de seu desacordo, ali vai, efetivamente, o modo como encaro a questão pertinente, ou, alternativamente, corrigi-lo, em sendo o caso. Assuma, portanto, o compromisso de informar-me pontualmente de seus desacordos.

3. Quanto a seu post imediatamente anterior, eu já lera esse livrinho de Buber, que tenho em versão espanhola e sobre o qual já escrevi na ouviroevento. É um texto a ser enfrentado, decerto, e, arrisco dizer, na mesma direção, do mesmo tipo, com a mesma força, com as mesmas premissas que o de Lévinas, De Deus que vem à Idéia. Futuramente voltarei a eles.

4. Reajo aqui a sua conclusão: a manutenção do Tu como pano de fundo, além, aquém, acima, abaixo de toda a parafernália verborrágica da Teologia. E bota parafernália nisso! Chamam-na, entre os domésticos e entendidos, escolástica, face, às vezes mitigada, de toda Sistemática. Toda. Sim, também a de Tillich, para desagrado de amigos (e leitores) meus (a aparência de atualidade não torna atual aquilo que é, desde sempre, ontológico e medieval).

5. Mas voltemos à sua "saída". É uma saída para a qual há de se demandar uma mística de fundo. Religião puramente catequética não a suporta. Experiências religiosas geradas e gestadas por catequeses de qualquer tipo, não a suportam. E, contudo, penso que ela se compare às origens da "religião", àqueles dias das intuições primárias do "sagrado", com a diferença, contudo, de que, então, não havia, ainda, a roupa doutrinária com que vestir a nudez do sagrado (ah, mas espere dois dias e terás uma centena de artigos de fé!), e, hoje, querer retornar à intuição nua, a despeito das letras, somente ao preço da iconoclastia herética e apóstata em relação à doutrina. O maior inimigo da intuição nua dum sagrado é a religição concreta...

6. Assim, no campo da discussão teológica, não tenho problema com essa sua saída proposta - disponho, pessoalmente, quer da iconoclastia, quer da mística. Vou-me bem à haroldiana estrada... A rigor, cá entre nós, é a minha saída, a que tomei, como caminho, há alguns anos, e que excige de mim a crítica iconoclasta de tudo que se afigure ídolo - e, em face da saída, tudo o é, seja de direita, seja de esquerda.

7. Todavia, amigo, meu amigo, isso, essa saída, essa opção - estamos prontos também pra isso? - é mito. Essa intuição pode constituir nada mais nada menos do que ruído da emergência de nossa consciência - e nada mais. E não temos como saber.

8. Penso que a mente humana, a hermenêutica/consciência humana, constrói uma representação global das coisas que, a rigor, é maior do que a soma das partes que a constituem. Nossa cosmovisão está sempre marcada pelo transbordamento das coisas em si, porque o processo de construção da representação dá-se assim, por acréscimos de sentido e mesmo de realidade ao real alcançado sensorialmente e que, enquanto real, não tem a dimensão hermenêutica da realidade apreendida, que, então, é fruto hermenêutico da consciência humana.: um real inflacionado, no sentido do transbordamento, como o bolo que, fermentado, escapa da fôrma, porque a fôrma não o comporta - para o que você arruma uma fôrma maior - eis a Teologia.

9. Ora, o que ocorre quando a mente humana "olha" para o todo?, quero dizer, o "todo" sensorial, perceptível, visível, material, cosmológico? Para onde o transbordamento operacional da representação "vazará"? Penso, Haroldo, que é nesse ponto da consciência humana que se crava, como cunha, a percepção do "sagrado" ainda em sua modalidade pré-conceitual, fruto estrutural/emergencial da consciência - mais do que ilusão, e, contudo, ilusório.

10. Logo, o risco desse Tu é tornar-se, de novo, ídolo e coisa, pessoa, força, ser, e, no entanto, não ser absolutamente nada disso. Dizer que não passa de um efeito colateral da consciência não é torná-lo um defeito, porque, se intuo adequadamente, o sintoma é incurável. No campo da política, esse ruído, esse "tu" poderia ser canalizado para a melhoria das relações humanas em todos os níveis - o homem consigo mesmo, com seus semelhantes, com o planeta. Mas talvez seja necessário sair da órbita da racionalização cateqúetico-religiosa, sair do padrão religioso, sair do mundo sistemático-teológico para tornar lúcida a nossa relação com nosso eventual ruído.

11. É muito difícil para nós, nascidos e criados na rotina personalizante, ontologizante, divinizante, desse "tu" desconstruirmos a porta de acesso à compreensão desse fenômeno. Contudo, enquanto ele puder transformar-se em "ser" manipulável, acredite-me (efeito retórico do discurso), nada, absolutamente nada, de fato, terá "mudado".

12. Penso que a Teologia, a nova, a primeira tarefa que cabe a ela é justamente essa: reconhecer que qualquer resíduo, qualquer produto de filtragem, qualquer depuração, qualquer decantação, qualquer coisa que se extraia do velho sistema, como sendo, ao contrário do velho sistema, então caduco, novo, "real", verdadeiro é, ainda, e sempre o será, pura antropologia. Feuerbach não falava, apenas, da "roupa verborrágica" com que a "teologia" se veste - ele falava da própria pulsão humana de vestir-se, vestindo-a: uma e outra, a pulsão e a roupa, ambas, antropológicas. Ora, a manutenção desse resíduo de fundo, Haroldo, não consiste, ainda, em veste? Certamente, porque mesmo ele é puramente questão de "crer". Sim, é uma ques~toa posta, pas a posteriori, posta porque estamos tentando desconstruir milênios de doutrina. Todavia, a vida concreta, humana, segue, independentemente de você crer nisso ou não, e independentemente para quem creia e não, como se sabe desde Eclesiastes, e que se recalca, entretanto, por força de ser mais cômodo para o política sacerdotal - e também para nós, quando tomados de medo - carregar um andor.

13. Mas insisto - não há diferença alguma entre a manutenção de toda a parafernália verborrágica da Teologia como dogma medieval, metafísico-ontológico, essa mesam verborragia, toda ela (até o Espírito Santo em Gn 1,2, para minha zombeteira diversão da douta "Teologia"), tornada, metodologicamente, em metáfora, seja, ainda ela, mitigada de sua veste, mas mantida em suas carnes, como esse "Tu" conceitual - se a atitude fundamental em todos esses três casos é a mesma: a adesão à fé de modo alienado, sem a consciência - necessária - se que, em tudo isso, joga-se no mito. Ora, meu amigo, eles, eventualmente, podem argumentar ignorância do fato, tal é a cegueira da fé. Mas, nós, tu e eu, depois que nos arrancaram os olhos da cara...?

14. Não, amigo, para nós, quero crer - para mim, certamente -, não há perdão. E, como o único juiz dado e certo é nossa própria consciência, que castigos nos aguardam no eventual e sopesado recalque político-teológico desse fato de fogo?


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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