quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

(2009/004) Os argumentos da fé


1. O sujeito tomado de "fé" - e, esteja bem assentado o fato, "fé", aqui, significa "doutrina", "dogma", "revelação", "mensagem", "depósito", "ensino", rigorosamente segundo a cartilha da epístola de Judas (cf. v. 3, 5 e 17) - é um sujeito que decidiu (por força de que forças?) entregar-se a um conteúdo, então tomado como "dado" e "certo", e, desde aí, refletir, argumentar, "demonstrar". Sim, Robson, sim, exatamente o que Morin chama de racionalização - que é uma aparência, mas só aparência, de "racionalidade", mas não passa de um sofisma, em última análise, de uma falácia.

2. Convencionou-se, desde há tempos imemoriais, a determinar-se que o sujeito de fé transforme sua fé em certeza, dela não duvide, viva por ela, morra por ela (eventualmente, mas não genaralizadamente, conquanto, sempre, potencialmente, mate por ela), porque o "ser" desse sujeito de fé, dessa fé, é tomá-la como "verdade" absoluta, inquestionável - divina, e Deus não pode mentir!

3. Todavia, é um exercício de bastante força humorística flagrar também os "fundadores" em pleno equívoco - e, nesse caso, não apenas em relação à sua própria fé, mas, sobretudo, no fato de que argumentam, para convencimento de terceiros, com base nesse equívoco.

4. Um caso interessante é 2 Pd 3,5: "mas eles fingem não perceber que existiram outrora céus e terra, esta tirada da água, e estabelecida no meio da água pela Palavra de Deus, e que por essas mesmas causas o mundo de então pereceu, submergido pela água" (BJ, n. ed. rev. 1989).

5. Bem, não estou certo de o autor dessa afirmação considerá-la ou no registro próximo-oriental clássico ("criação" nada mais é que um mito transignificante para a construção de cidades) ou, já, no registro "mítico-filosófico-científico" helênico (registro que, depurado de suas contaminações mitológicas, dedundará na astrofísica moderna, e segundo o qual "terra", aí, significa, de qualquer modo, o conjunto das terras planetárias, seja o platô pangéico, da concepção antiga, seja a esfera planetária, das concepções mais recentes). Seja como for, o autor trata "ontologicamente" a referência...

6. O autor não se deu conta de que está diante de um mito, e que, nesse caso, está diante de uma transignificação político-religiosa que expressa, em todos os sentidos, uma atualização cultural, um modo próprio de um tempo e de um lugar, mais ou menos ampliados, de dar sentido a aspectos da realidade e fazer esse sentido ser apreendido por terceiros. Para o autor de 2 Pd 3,5, contudo, o que ali vai escrito é, ao contrário, "expressão da realidade". A fé, a sua fé, "sabe" que a "terra" - seja o platô pangéico, seja a esfera planetária, vai-se saber... - foi tirada da água e na água permanece. Bem, nem uma coisa nem a outra são "dados" da realidade: nem a terra saiu da água, nem na água permanece, de modo que o "valor" daquela tradição não se encontra em seu conteúdo (que é próprio daquela época, daquela cultura, daquele lugar - como o "modo" de fazer casas, por exemplo), mas no fato de que essa era a forma como aquela cultura funcionava (cada cultura tem um jeito próprio de construir casas). O processo é real, conquanto sua "roupa", puramente imaginativa, criativa - cultural.

7. Hoje, tremo diante da expressão "educação religiosa"... Tremo! Seja em nosso meio, na tentativa sub-repitícia de cristãos imiscuirem-se na educação de crianças em espaços onde elas estão, digamos, "indefesas", tanto quanto nos países tomados pelo fundamentalismo islâmico, em que crianças são literalmente submetidas a um trabalho de inculcação religiosa, fanática, que há de torná-las, literalmente, sub-humanas, mercê de uma racionalização imbecilizante. E digo depressa - não se trata de questionar o conteúdo do processo - ah, os fundamentalistas islâmicos ensinam suas crianças a seguirem cegamente suas leis, mas nós, cristãos, ensinamos o amor... Nada disso. Também nós convertemos o ensino religioso em subtração radical da autonomia, na entrega à fé - ai, meu Deus, que loucura! - e na submissão à "vontade de Deus", com o que criamos um sistema no qual milhões de pessoas estão ávidas por fazer aquilo para o que foram adestradas - seguir a "vontade de Deus" -, de modo que, quando "Deus" fala, elas ouvem. E "Deus", você sabe, tem CPF e usa terno. Ah, agora, também, saias...

8. A fé é uma praga. A fé-enquanto-ensino é uma desgraça. Um mal. Um vírus anti-humano. Uma rotina de controle social poderosa - hípócrita até o cinismo. Pode-se até crer que haja formas "leves" e "boas" desse tipo de rotina social... Será? Um sistema tão potencialmente destrutivo da sanidade humana, poderá ele subsistir em alguma forma não potencialmente letal para essa mesma "humanidade", essa mesma potencialidade hmana para a autonomia? Regra: ser humano é ser autônomo - não se chegou lá?, não se é, ainda "humano". As bestas seguem o DNA, a sub-humanidade, a vontade de terceiros: só quando um homem ou uma mulher tomam-se em sua desgraçada solidão autônoma, somente aí, nasceu um ser humano. A epopéia da espécie re-encena-se - ou não - na vida de cada homem, de cada mulher. E morre-se depois. Ou durante, se se entrega àquela "inocente" fé...

9. Para encerrar, uma piada divertida. Um fazendeiro em cuja fazenda recém se instalara uma ferrovia, chama o capataz. Vai viajar. Olha, cuidado com os bois, porque o trem pode matar. Quando o trem passar, tira os bois da linha. Cabreiro, fica o capataz a imaginar o que seria o trem. Mês depois volta o fazendeiro. Desgraça - trinta bois mortos. Mas, patrão, a sorte é que o trem veio de "anssim", porque se vem de "anssim" matava era tudo... Demitido, perde-se na cidade grande. Entra num shopping. Na vitrine, um ferrorama. O pobre pega o primeiro porrete encontra e dana a estraçalhar o trenzinho. Pega que pega, segura que segura. Homem de Deus, que é isso? Isso é uma desgraça, moço, mata boi. Desse tamhno não mata nem rato, sua besta! Agora!, mas deixa crescer pra ver...


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

2 comentários:

Robson Guerra disse...

Oi Osvaldo.

Trechos de Feuerbach sobre a fé em "A Essência do Cristianismo":

"A fé é o poder da imaginação que transforma o real no irreal, o irreal no real - a contradição direta com a verdade dos sentidos, com a verdade da razão. A fé nega o que a razão afirma e afirma o que ela nega." (p. 242)

"A fé limita o homem; ela lhe toma a liberdade e capacidade de valorizar devidamente o outro, o que lhe é diverso. A fé é presa em si mesma." (p. 247)

"Na fé existe um mau princípio." (p. 250)

" (...) a fé anula a união natural da humanidade (...)" (p. 251)

"A fé é essencialmente intolerante." (p. 253)

"A fé é o oposto do amor." (p. 254)

FEUERBACH, Ludwig. A Essência do Cristianismo. Trad. de José da Silva Brandão. Petrópolis: Vozes, 2007.

O texto de Feuerbach vai diretamente ao ponto. Incontornável, diria.
Mas, quem deu crédito?
Como você disse em um post anterior, parece que querem simplesmente enterrá-lo. Mas, sua voz ecoa, ainda, em alguns ouvidos.
Pelo menos nos meus. E nos seus também, não é mesmo?

Robson Guerra

Peroratio disse...

Sim, Robson, mas não só nos ouvidos - no sangue, na pele. Feuerbach é o equivalente pendular a Platão/Paulo: lá, cosntrói-se - ele vai, sopra, e cadê?, era tudo "invenção". Há invenções que são boas, aquelas que se orgulham de ir a público e mostrarem-se como "a invenção do século", algo assim, por exemplo, como o "telégrafo". Mas o que Platão e Paulo construíram, essa invenção dos milênios, se sabe que é invenção, tem vergonha de dizê-lo, e se esconde na forma retórico-política de idéia adventícia. Ousar pensar em "checar"? Heresia. Duvidar? Blasfêmia. A primeira coisa que essa invenção faz é arrancar os olhos... depois, o resto do corpo vai indo, lentamente.

Mas há esperança. Sempre.

Um abraço,

Osvaldo.

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