quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

(2009/007) Do passado, do futuro, da esperança


1. Em meu post anterior, vi-me escrevendo uma afirmação controvertida: disse que a esperança, quando fomentada por meio de fixações retóricas em fatos, textos e tradições, logo, quando alimentada desde o passado, tende - na verdade usei o verbo "ser" - a constituir uma espécie de prisão noológica, o que, por ironia, é um contrasenso, já que a esperança se pretende libertadora, mas, nesse caso, converte-se numa espécie de masmorra sutil, sutil, mas, ainda assim, masmorra.

2. Não sei se levei até o fundo a reflexão a respeito dessa declaração. Tanto assim que pensei a respeito dela durante boa parte da noite de ontem, e ainda me sinto pressionado por ela. No fundo, trata-se de uma declaração de efeito: a esperança, quando fomentada por meio da manipulação do passado, passado esse assumido como base e garantia dessa esperança, transmuta-se em aprisionamento profético-sacerdotal daqueles que se deixam tocar por ela. Para além do efeito retórico, contudo, haverá algum fundamento nela?

3. A questão se resume em saber-se em que consiste a manutenção do passado como base e fundamento da esperança. O que, a rigor, nesse passado, constitui a base e o fundamento da esperança? A esperança, que por natureza abre-se e aponta para o futuro, por que ela tem de ter sua base e fundamento nesse passado, em alguma coisa dita aí, acontecida aí, revelada aí? O futuro, a esperança, o jogo entre esperança e futuro, não se torna, assim, uma função desse passado, uma dependência já quase - se não no todo - ontológica, determinada por esse passado? A esperança, o futuro, não passa, nesse caso, a depender da minha subserviência a esse passado - e mais, em termos sociológicos e políticos, da minha dependência dos gestores dessa tradição?

4. Ah, sim, o passado é constitutivo do presente, e, por conseqüência, também do futuro. Mas em que sentido? No sentido de que ele estabelece, determina, "funda" o futuro? Ou, antes, tão-somente no sentido em que, dada determinada singularidade no passado, essa singularidade, esse acontecimento, abre, incontinenti, uma nova e interminável série de futuros possíveis, de alternativas, de probabilidades, abertas, aleatórias, livres, sujeitas, a seu tempo e modo, a tantas outras singularidades futuras? O conceito de ecologia da ação destrói irremediavelmente qualquer possibilidade de estabelecermos, sensatamente, um roteiro entre passado, presente e futuro, porque não está dada em qualquer ação a garantia de um efeito - os efeitos de uma ação são imprevisíveis, incontroláveis. Além disso, um determinado efeito, qualquer que seja, pode ser conseqüência de inúmeros fatores, antagônicos entri si, até. Assim, quer-me parecer que se trata de uma ontologia disfarçada, de uma espécie de "calvinismo" ontológico dissimulado, a pretensão de que o futuro esteja baseado no passado, mais do que isso, em determinada visão, em determinada "construção" desse passado.

5. Não se levou a sério a História, ainda, ali onde se pretende estabelecer um link de "esperança" entre passado e futuro. Não se aprendeu nada, ainda, aí. O futuro, a esperança, deve construir-se a partir do desejo e do diálogo, da luta, dos acordos, olhando-se para a frente. O passado, aí, não é base, é, apenas, histórico - no sentido técnico do termo, como "prontuário". Os acontecimentos e os ditos de ontem geraram pontos de concretização probabilísticos que, por sua vez, redundaram no presente. O presente tem de ser julgado não a partir do passado, mas a partir de si mesmo, a partir dos valores negociados aí, em face dos quais o passado pode ser considerado coerente, caso presente e passado perfilem-se positivamente, ou incoernete, caso o presente estabeleça uma ruptura ética e histórica com o passado.

6. O futuro, então, encontra-se aberto. Se nem o presene pode, a rigor, servir de fundamento inexorável para ele, quanto mais o passado. O presente é insuficiente para determinar a esperança - ele é, tão somente, a estrada. A estrada - o que não significa que ele seja mero meio, mas que o presente constitui-se a partir das antecipações do futuro, constuindo-se, agora, a partir de minhas antecipações e esperanças. Encontrar-se aberto esse futuro significa que os atratores que o constituem estão, ainda, para emergir. A esperança, que agora se estabelece, é imperfieta, fraca, provisória, porque só tem, em si, gérmens do passado e do presente, e o que virá a ser, o futuro, ainda não a pode constituir senão na forma de antecipações imperfeitas. Somente quando o futuro transformar-se em presente, somente aí ele poderá constituir, concretamente, base para a esperança materializada quanto a, agora, um novo futuro. E, então, o ciclo continua.

7. A esperança, pois, decorre fundamentalmente da pulsão de vida - e, mais do que isso, da consciência humana do amanhã. Os animais têm pulsões vitais, instintos de sobrevivência, mas não têm qualquer tipo de esperança. E, contudo, têm passado! A esperança é uma espécie de patologia do corpo humano, da conciência humana, que, antecipando a suas preocupações de vida e de morte, sabe que a vida oscila entre dor e prazer: escolhe-se o prazer, que eventualmente falta. É a própria vida, pulsando no peito, no crânio, nas gônadas, é ela, e não as abstrações traditivas do passado, a base para a esperança. A esperança, o fututo, jaz dentro de nós, aqui e agora, e não lá, na palavra de uma homem, na cantiga de uma mulher, tomados, miticamente, como fundamento do que quer que seja. Aí, onde esse encanto funciona, alguém abriu mão de si, cansou-se de si, entregou-se ao encantamento, à magia, esqueceu-se de si, ou, pior, labutou para que tudo isso se desse na alma alheia, crime sacerdotal a que profetas igualmente se dedicam.

8. Não, não, não. A esperança motivada pelo passado constitui, ainda, resquício de uma época sacerdotal, de uma época em que homens e mulheres, tomados como mediadores, estabeleciam não apenas a leitura do passado, mas as regras do presente e a linha do futuro. Aprendemos que isso, que precisamente isso, era a mais sutil forma de controle social, de controle psicológico, de controle sociológico. Era fraude, mesmo onde cuidava ser santidade. Era falsidade, mesmo onde se servia da escolástica. Era crime, mesmo quando se via pedagogia. Era - e é - maldade. Mesmo quando se cuida boa.

9. Se estamos, nós, seres humanos, prontos para essa nudez? Depois de milênios trancados no quarto de nossa heteronomia? Não, não estamos, não. Alguns, arriscam, e saem às escuras. Outros, sequer dão conta de sua situação existencial. O que não muda, contudo, o fato de que onde quer que essa retórica de esperança com base em papel se constitua, aí se pratica, ainda, um deserviço à humanidade. Quer dizer - se minha reflexão tiver algum fundamento, porque, aqui e agora, como posso, efetivamente, saber?


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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