terça-feira, 27 de janeiro de 2009

(2009/006) Das coisas que se aproveitam pra dizer


1. Desde 1993, leciono Teologia. Graduei-me no Campus Avançado de Nova Iguaçu do Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil, onde ingressara em 1987, ano de meu casamento - ano marcante. Graduei-me em 1992, e iniciei minha carreira docente no ano seguinte, na cadeira de Metodologia da Pesquisa, a convite do então Coordenador local, Prof. Luiz Roberto dos Santos. Desde então, ininterruptamente, tenho sido, sobretudo, "professor" - e, sempre, da mesma Instituição: STBSB, hoje, Faculdade Batista do Rio de Janeiro, onde ainda leciono. Lá se vão, portanto, dezesseis anos.

2. Desde então, a isso se resume minha relação com a CBB (Convenção Batista Brasileira), da qual o STBSB é Órgão Oficial. Bem se vê, portanto, que minha relação com ela, a Denominação, nunca deu-se nas sombras. Meus discursos, todos, foram, sempre, públicos. Publiquei não poucos artigos em O Jornal Batista, outro Órgão Oficial da CBB. Durante um período importante para a Casa, fui ainda Coordenador do Curso de Teologia do STBSB, cargo que deixei por conta do doutorado em Teologia na PUC-Rio, agora concluído. Foi durante esse período que coordenei a formulação do Currículo do Curso de Teologia, aprovado pelo MEC.

3. Paralelamente a isso, criei a página http://www.ouviroevento.pro.br/, uma varanda de trabalho e descanso. Ali publiquei, não nas sombras, tudo quanto escrevi, do jeito que escrevi. Malgrado por volta de 2001/2002 eu ter recebido a "orientação" preocupadíssima de um "colega" de trabalho quanto ao "perigo" da publicação de textos - para ele, era melhor não publicar nada, para que não se viesse a usar meus textos contra mim -, sou minha testemunha, diante do espelho, de que nunca me furtei a escrever o que vai cá no peito. Nada há em minha teologia que não esteja publicado, confessado, para Deus e o Diabo lerem.

4. Nunca, durante todo esse período, nenhum, absolutamente nenhum "líder" denominacional, de qualquer instância, procurou-me para questionar qualquer coisa que eu tenha escrito. Nunca. Para ser absolutamente honesto, a única questão que me foi dirigida, nesses dezesseis anos, foi uma pergunta feita pelo reitor do seminário, Prof. Dr. Israel Belo de Azevedo, instado que fora por uma "reclamação" telemática de aluno, muito cioso da "tradição", e revoltado com meu discurso em classe, porque eu não faço apenas carinho nela, mas lhe exponho as tripas, eventualmente putrefatas - também. E a pergunta resumiu-se a isso: "Osvaldo, tem certeza de que isso é ensinar"? Minha resposta: "Não?". Ensinar, para mim, é pôr diante do educando as alternativas, para que ele, sozinho, em sua solidão, decida, escolha, assuma o risco. Se vai correr para seu pastor e perguntar o que faz, problema dele. Quanto a mim, corro meus riscos.

5. Assim, mesmo tendo publicado num Órgão Oficial da Denominação (e, talvez, por causa disso) críticas algumas vezes severas a aspectos de práticas cripto-sacerdotais de muitas posições eclesiástico-teológicas domésticas, mesmo posicionando-me, sempre, resolutamente a favor da crítica severa e radical, da iconoclastia interna e externa, da consciência política, sempre, durante todo esse tempo e trabalho, senti-me no cumprimento do dever de cátedra.

6. Quanto a isso, alguma paz de espírito veio-me quando li certo princípio, a isso relacionado, dos Princípios Batistas:

6.1 "Os membros de igrejas devem ter interesse naqueles que ensinam em suas instituições, bem como naquilo que estes transmitem. Há limites para a liberdade acadêmica; deve ser admitido, entretanto, que os professores das nossas instituições tenham liberdade para erudição criadora, com o equilíbrio de um senso profundo de responsabilidade pessoal para com Deus, a verdade, a denominação, e as pessoas a quem servem" (PB, 5, VIII). Havia limites para mim, ao mesmo tempo que liberdade, cuja consciência primeira era a minha própria. Dado que jamais fui interpelado por meus superiores, penso ter, até aqui, respeitosamente, e sem negociar um milímetro que seja com meus próprios princípios, com minha própria consciência, jogado bem o jogo político da tensão entre limite e liberdade, de respeito e crítica.

7. No entanto, acabo de receber um e-mail, desses, ditos de "preocupadíssimos amigos", mencionando, explicitamente, e sem rodeios, que minhas críticas à tradição aproximam-se (correm o risco de assim serem interpretadas como próprias) daquela prática de "cuspir no prato que se come", uma vez que meus filhos e eu "comemos por anos a fio" da Denominação. Não, não - não me veio o e-mail de qualquer instância hierárquica, e mais não direi para não expor a pessoa ao ridículo público, já que ao ridículo privado já se expôs irremediavelmente.

8. Lamentável. Não, não cuspo no prato que como, primeiro, porque como de meu trabalho. Não devo absolutamente nada à Denominação, nem ela a mim, porque o que há entre nós, eu, na pessoa de funcionário - professor doutor - de uma de suas Instituições, e ela, contratante sob o regime da CLT, é um contrato de trabalho, de cátedra, ao qual tenho honrado e ao qual, a seu modo, tem ela honrado. Nossa dívida mútua, de direito e de fato, é o respeito mútuo, a responsabilidade mútua. Se devo ser grato a Deus, tanto por ele mesmo quanto pelo sustento cotidiano, também é verdade que tal me vem por meio de meu trabalho, e, se eu não trabalhar, sustento algum me virá - o salário mensal tem por contrapartida o absoluto cumprimento de horário. Não há favores. Não há dívidas. Salvo a mais-valia característica das relações modernas de trabalho. Logo, não cuspo em prato algum, antes, pago-o, e, tendo-o a dar a meus filhos, posso, todos os dias, deitar e dormir, porque a comida que mastigo não tem areia e pedrinhas a quebrar meus dentes. Respeito a cátedra, respeito a pesquisa, respeito meus superiores - isso tudo porque jamais, até hoje, fui obrigado a escolher entre minha consciência e a hierarquia. Oxalá esse dia nunca se apresente...

9. Continuarei dedicando-me à crítica à tradição - toda ela, onde quer que se materialize, ob quaisquer formas. Mil vezes denunciar a tradição, naquilo que ela tem de criminoso, do que apenas exaltar-lhe os laivos (as mais das vezes fruto de "criativos" contorcionismos hermenêuticos!) de esperança que muito amiúde uma prestidigitação retórica, a-histórica, pode lhe conferir, à custa, claro, de taparem-se os olhos. E isso pelo simples fato de que, a meu ver, não é preciso qualquer fundamento pretérito para a esperança - o futuro é aberto e franco... Todavia, é necessária a crítica do passado, incisiva, direta, explícita, inegociável, porque o presente está eivado dos crimes nele e por ele perpetrados - mesmo naquilo que louvamos esse presente! Até as "Boas Novas" são criminosas. De modo que é necessária, sempre, a crítica, e infinitamente mais eficaz do que a seleção de esperanças perdidas na noite dos tempos... Também a manutenção da esperança no passado é uma forma - sutilíssima - de prisão!, uma sutil prisão "profético"-sacerdotal...

10. Falando em crítica, aproveito para fazê-la. Está - com razão!, com muita razão!, com toda razão! - na moda a defesa da questão de gênero. Oh, sim, há milênios as mulheres têm sofrido sob o peso da vara masculina (a conotação sexual é proposital). Passou da hora o seu levante... Contudo, não nos enganemos: para além do direito delas de alcançarem, em todos os sentidos, a igualdade, seu comportamento será, nesse sentido, rigosorosamente como o "nosso". Não são seres angelicais em face dos demônios masculinos. Ambos, homens e mulheres, são, ao mesmo tempo, anjos e demônios. Ambos sabem, ah, sim, aproveitarem-se de uma certa posição (que eventualmente pensam ser de grande altura!) (e que consideram, questões pulsionais freudianas, ser suficiente para "escamotear" a indecência do gesto aproveitador - mas sempre é possível que sejamos vítimas de uma auto-cegueira terapêutica) para escrever aquilo que, no fundo, é, de fato, o que queremos dizer mais diretamente, mas, então, sob a capa de uma "preocupação" amistosa. Defendo o direito de as mulheres alcançarem, totalmente, a igualdade social em face do gênero masculino - mas não me engano: também a guerra era patrocinada por "deusas", e isso quer dizer muita coisa... Que seja: não faz diferença de que mão venha a punhalada, porque o que dói é o punhal.

11. Continuarei a investigar as dimensões, as concretizações, criminosas da tradição que me veste e investe em mim, da qual sou parte indissociável, da qual sou cúmplice dos crimes hediondos - principalmente os cristãos, os crimes da fé. Minhas pesquisas, meu trabalho, meus escritos, são um acerto de contas comigo mesmo, com os demônios que habitam em mim, e que cá vieram fazer morada, paridos por séculos de Cristianismo, milênios de religião e guerra. É sobretudo contra meus demônios que invisto a minha fúria. Se, eventualmente, em tendo os seus, alguém ressinta-se da crítica que a eles faço, é esse um bom momento para tomar partido. Ah, sim, e cada coisa que dizemos, escrevemos e fazemos denuncia, contra nossa dissimulação, nossa posição de fundo.


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

2 comentários:

Felipe Fanuel disse...

Caro Prof. Osvaldo,

Endosso teu trabalho e admiro tua coragem. Tens a alma grande, não disposta a se render a heteronomias religiosas. Hoje, como um jovem pesquisador, encontro inspiração em gente assim, que não se acomoda, mas se incomoda diante das realidades injustas operadas através da manipulação do poder, sobretudo em instituições religiosas.

Após ler estas tuas confissões, vejo que é na idiossincrasia da fronteira entre o passado e o presente que é possível se engajar na construção de um mundo melhor. Sinto que crescer seja algo parecido com isso, pois faça chuva, faça sol, as raízes precisam se cravar terra adentro.

Uma vez já enraizadas, que tuas ideias encontrem sempre o lugar do diálogo dentro de ti, para que as estruturas sejam abaladas pelos próprios conflitos que a Vida a todos nós apresenta.

Afinal, nunca haverá o silêncio das ideias, nem mesmo dentro de nós mesmos. Como nos lembra André Gorz, quando tudo tiver sido dito, tudo ainda ficará por dizer, sempre restará tudo a dizer.

Benditos sejam aqueles, como tu, que impedem o esquecimento da nossa impossibilidade de sermos mudos!

Fala sempre. Jamais te cala.

Um abraço.

Peroratio disse...

Curioso que esse seu comentário esteja cravado nesse meu post... Não imaginava que ele, um desabafo/recado sem destinatário/com destinatário específico pudesse merecer uma observação positiva sua. Não era, ele, um "tratado", mas um berro, daqueles que a gente dá quando se é tomado de indignação.

Mas aí está: quando achamos que vai, não vai, e quando achamos que não vai, aí é que vai...

Tá bom. É que a vida é um rio que constrói seu próprio curso... a seu bel prazer.

Um abraço,

Osvaldo.

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