quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

(2008/108) Esse discurso, sim, é duro...


1. Cena um: em Homo Ludens (não fosse nome de livro, o "ludens" deveria ser escrito em minúscula, como manda a regra da moderna taxonomia [Stephen Jay Gould]), Johan Huizinga, quando descreve o funcionamento da cultura, da sociedade humana, como estruturando-se na forma de "jogo", afirma que, conseqüentemente, há, na cultura, na sociedade humana, três espécies de pessoas: a) os jogadores engajados que, aceitando as regras presentes no momento em que passam a jogar, respeitando-as, simplesmente "jogam", b) os "batoteiros", ou seja, os trapaceiros, aqueles que jogam, mas roubam; e c) os desmancha-prazeres, aqueles que, observando de um jeito propriamente seu o "jogo", perdem a vontade de jogar, porque, para eles, o jogo perdeu a graça: "tocamos flauta, e vós não dançastes...".

2. Huizinga continua a "descrição", afirmando que os "jogadores" (adaptados) aceitam razoavelmente bem os trapaceiros, mas detestam os desmancha-prazeres. A razão seria explicada pelo fato de que, conquanto "roubem", os trapaceiros continuam no "jogo", e, continuando no "jogo", ratificam-no, reforçam-no, atestam, com sua trapaça, que o "jogo" deve ser jogado - e que ele é tão bom, mas tão bom, que, para jogá-lo, faz-se de tudo. Por outro lado, os desmancha-prazeres são odiados, porque sua atitude, mais, seu comportamento, é como o daquele menino da fábula do rei nu...

3. Cena dois: uma das seções mais críticas do mais crítico dos livros que já li, quando se trata de crítica ao "Cristianismo": a seção XXXVIII de O Anticisto. Cito um trecho: "mesmo com as mais modestas exigências de equidade, é necessário que se saiba que hoje um teólogo, um sacerdote, um Papa, a cada frase que pronunciam não se enganam apenas, mas mentem - e não lhes é dado poderem mentir por 'inocência' ou por 'ignorância'. O sacerdote também sabe, como qualquer pessoa, que já não há 'Deus', nem 'pecado', nem 'Salvador' - que o 'livre arbítrio', a 'ordem moral universal' são mentiras - a seriedade, a profunda vitória espiritual sobre si mesmo não permitem já a ninguém parecer ignorante sobre esse ponto..." (Nietzsche, O Anticristo, p. 72-73).

4. A meu modo, tenho aplicado na veia doses cada vez maiores desse tipo de constatação. Não saberia mais diferenciar entre, na minha corrente sangüínea, o que é propriamente meu, o que é derivado de minhas leituras dos desconstrutores - seja como for, isso tornou-se eu. Por exemplo - supreende-me, num grau superlativo, que os cursos de "Teologia" constituam-se (em tese!) também de disciplinas a rigor, se aplicadas em suas próprias dimensões epistemológicas, desconstrutivas, necessariamente iconoclastas: Antropologia, Sociologia, História, Psicologia, Fenomenologia, Filosofia. Todavia, que impacto têm tais programas científicos na "Teologia"? A rigor, nenhum - nenhum que faça à Teologia envergonhar-se de seu "terceiro olho" (refiro-me, aqui, ao livro A Terceira Visão, de Lobsang Terça-Feira Rampa, monge tibetano, no qual descreve a aplicação cirúrgica de uma pedra em determinada glândula do cérebro para "ativar" a visão espiritual - e, para que não pairem dúvidas, é em tom irônico que aplico o "conceito" à "Teologia"): pelo contrário, Barth, o cirurgião, garante o sucesso da operação [melhor seria ter escrito: prestidigitação...]).

5. Que acordo há entre aquelas seis senhoras e a Teologia? Julguem-me meus amigos como entenderem correto, mas, a meu ver, nenhum. A Teologia que aí está é, rigorosamente, aquela que Nietzsche descreve na seção XXXVIII - e, se somos profissionais, também não nos cabe apelar para "ignorância" ou "inocência"... E, no entanto, como é divertido, acreditem-me, é divertidíssimo, ouvir professores de (por exemplo, mas não apenas) sociologia que, ao mesmo tempo, são "teólogos"! Quantos flagrantes de trapaça: o pé, agora, está aqui, e fala, e fala, e fala, mas, agora, o pé salta para ali, e fala, e fala, e fala... Tristíssimo: é preciso saber que não há muito que fazer, que se é incapaz de "fazer ver" (ser um tanto rogeriano, eu diria), para rir-se disso. Fosse eu um Quixote, arvorar-me-ia em profeta da modernidade. Não o sou. Fosse eu um santo, arder-me-ia em "zelo". E não sou. Sou o quê? Apenas um desmancha-prazer - que jogo absolutamente sem sentido, sem graça!, e como há "batoteiros"! - aliás, é preciso ser batoteiro acima da média para jogar bem esse jogo...

6. Acabo de ler um livro, fresquinho, em que o "Espírito Santo" é colocado, ele e a Trindade, ai!, em Gn 1,1-2... Triste. Tristíssimo... Penso na multidão de crentes, interminável, que, lendo um tal disparate desses, há de aumentar - e muito! - sua fé... O que me remete àquele outro inigualável aforismo de Nietzsche, que ele chamou de "as condições de Deus", mas que eu chamaria de "Apologia" ou de "Teologia Sistemática": "'o próprio Deus não poderia subsistir sem os homens sábios', disse Lutero, e com muita razão, mas 'Deus ainda menos poderia permanecer sem os insensatos', foi o que esse bom Lutero não disse'" (Nietzsche, A Gaia Ciência, aforismo 129). Cá entre nós, o autor "acredita" naquilo? Duvido... Mas vivemos em dias de "metáfora", em que, o que importa, é que as fichas continuem sobre a mesa, os apostadores, apostando, e a banca, ah, essa, ganhando sempre... O que importa é fazer Deus estar do nosso lado...

7. Termino com mais uma citação da seção XXXVIII, e ao cabo dela, justifico-a: "o homem de hoje - o seu hálito impuro asfixia-me... Como todos os clarividentes, uso de grande tolerância para com o passado, isto é, generosamente me constranjo a mim mesmo: atravesso com melancólica circunspecção milhares de anos de um mundo-manicômio, chama-se ele 'cristianismo', 'fé cristã' - abstenho-me de tornar responsável a humanidade pelas suas doenças mentais. Mas a minha sensibilidade revolta-se, entra em erupção, assim que penetro nos tempos modernos, nos nossos tempos. O nosso tempo é consciente... O que outrora não era senão doença, é hoje inconveniência - nos nossos dias é indecoroso ser cristão" (Nietzsche, O Anticristo, p. 72).

8. Não entro no mérito da antecipação de Freud, não entro no mérito da aparente condenação "no todo" do "Cristianismo" (é só aparente), como se, nele, nada, absolutamente nada, tivesse valor. Nesse aspecto, não sigo a radicalidade de Nietzsche, conquanto a aplique ao fundamental do Cristianismo e, com isso, reduzo a cultura todo o mais, e, nesse caso, cultura "como quaisquer outras". Mas é impressionante que, rigorosos cem anos depois de Nietzsche, eu sinta, também na carne, as mesma sensações descritas na seção XXXVIII - estou imprestável para a Teologia tal qual ela teima em se fazer. Olhando as pessoas comuns, entregues ao mito, controladas por ele, sinto, confesso, comiseração e dó, conquanto reconheça que, para muitas delas, não fosse esse mito, a loucura ser-lhes-ia dificilmente inexorável. Mas observar os "teólogos" engajados em sua "práxis" de controle, pelo mito - pela "mentira" - me causa revolta e indignação. Meu corpo não tolera mais. Game over!, exige-me, grita-me, berra-me, cada célula do corpo...

9. E, no entanto (é preciso ser "complexo" para o compreender), não se trata da possibilidade de, meramente, apostatar, como que de um "deus". Não há essa hipótese - conquanto meu corpo se recuse o jogo, recusa-o nos termos em que o tabuleiro o impõe, porque, por outro lado, como parte do meu corpo, minha cabeça, meu cérebro exige, a si mesma/o, que o jogo seja "transformado", "reformado" em outras bases - ah, nada próximo da "Reforma", certamente, onde apenas se troca a toalha do altar, mas lá continuam altar e toalha: imponho-me, eu me imponho, algo em mim impõe-me, que os critérios do jogo, as regras do jogo, o tabuleiro do jogo, tudo, no jogo, seja transformado. E - atentar para isso é compreender a minha (in)sanidade: tudo isso para que o jogo possa continuar a ser jogado, para que ele faça sentido, para que ele seja consoante a crítica moderna, o valor moderno, a consciência moderna, para que ele, enquanto jogo, seja, sobretudo, ético e compatível.

10. Minha hiper-crítica é um ato intestino de hiper-engajamento, mas não em face da misancene litúrgica, dos movimentos ritualísticos medidos e encenados, dos discursos da Tradição, dos lugares marcados. Não - um hiper-engajamento com a condição humana, minha, pessoal, própria, de saber que deixar a outrem a tarefa é a covardia ou o "negócio", mas que, diante do espelho, só há você e aquele que, ali, desde seus próprios olhos o constrange. Não há outra consciência diante da qual se deve levar a sério a condição humana. O Outro, os "outros", todos eles são facilmente manipuláveis (e, no fundo, está, sempre, só, dolorosamente só), e facilmente crerão em Trindade e Espírito Santo onde quer que você os coloque, claro, com três palavras mágicas e um gesto ritual - mas você, você!, você? Você, não! Dormir, de noite, deve ser a mais terrível das experiências...

11. Nossa... que efeito retórico, não?


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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