1. Segundo minha memória, devo ao Élcio Sant'anna, não me lembro quando, a observação, à época passada sem maiores conseqüências, de que a tradução do "tetragrama" (as quatro letras hebraicas do "nome" Yahweh [yod-he-vav-he]) como "Eu sou" estaria equivocada. Seria esse o caso de uma "releitura" helênica do verbo hebraico hayah - "ser". Ora, como o verbo inglês "to be", hayah pode ser, também, "estar". No contexto de Êxodo, não há qualquer tentativa da apresentação de uma "essência" de Yahweh como "Aquele que é" - israelitas/judaítas se expressando assim, antes da helenização judaica? Improvável.
2. O contexto favorece, e, ainda cito Élcio, a interpretação de hayah, aí, como "estar". Yahweh ouve o clamor do povo, observa-o desde "lá de cima", comove-se e desce. Moisés pergunta, todos sabemos, quem ele deverá dizer ao povo que veio resgatá-los. Yahweh não responde "seu nome" - antes, afiança sua presença: "Aquele que estará com o povo", diga a ele que esse é quem veio resgatá-lo. Essa interpretação parece ser ratificada no final de Mateus - eis que estou convosco... Além disso, em Ex 33, Moisés faz Yahweh saber que, caso ele decida não ficar mais junto do povo em sua caminhada, que, então, não faça mais o povo caminhar - ou seja, se Yahweh não "vai estar", nada mais importa...
3. Penso que outro possível equívoco seja nossa recepção dos termos hebraicos tob e ra'ah de Gn 2,4b-3,24. Aprendemos a traduzi-los - e isso fez história! - como "bem e mal". Assim, Adão e Eva teriam "pecado" quando aprenderam o discernimento moral, fato com o qual se consuma, definitivamente, a inocência. Ser "como nós", como "os deuses", nesse caso, seria possuir o disernimento moral - o imperativo categórico ético de Kant...
4. Duvido. O que há de comum aos deuses não é a sua "moralina". Trata-se, a meu ver, do poder de decisão do que lhes pareça bom e mau. Decidir pelo que é bom e pelo que é mau, ser seu próprio juíz, ser o dono do próprio nariz, eis, a meu ver, o "pecado" de Adão e Eva. Ah, eu lhes digo, meus amigos (puro efeito retórico, porque, sabe-se, tudo não passa de hipótese... Mas o efeito retórico é bom, não é?): ah, eu lhes digo, meus amigos, que havia alguém que não queria que "Adão e Eva" decidissem por si mesmos o que era bom e mau. "Adão e Eva" deveriam perguntar a esse alguém, sempre, o que era bom e o que era mau...
5. Não lembra a história de Lilith? Segundo a tradição judaica, Lilith fora a primeira mulher criada por Yahweh. Esposa de Adão, ela não queria deitar por baixo. Queria deitar por cima. Absurdo! Mulher tem que ficar deitada embaixo, e o homem, em cima, sinal de domínio: é assim com a égua, com a vaca, com a cadela... tem de ser assim com Lilith. Comigo, não! Então, moça, rua! E lá vai ela virar demônio do deserto... Para Adão não ficar sozinho, Yahweh cria, então, Eva, que, submissa, como a égua, a vaca e a cadela, aceita deitar por baixo, o homem em cima, o natural de todas as coisas... Lilith queria decidir o que era bom, pra ela. Rua! Onde já se viu...?
6. Há mais termos mal recebidos - a "história dos efeitos", exegeticamente falando, está mais para "história dos defeitos". E tivemos excelentes professores, porque, cá entre nós, querem povo menos modelar para a exegese do que os leitores - logo, escritores - neotestamentários da Bíblia Hebraica?! Não escapa um! Todos excelentes alegorizadores, exímios manejadores do midrash, mas, para o espírito crítico (exegético) moderno...
7. Há muito que fazer, todo um mundo para desenterrar... Deixo uma instigação: aposto minhas fichas, todas, em que a história dos efeitos de Gn 1,1-2,4a não acerta uma única aproximação ao sentido histórico-social da narrativa. Por exemplo: 'Adam ("façamos o homem"), humanidade? Duvido... Para todos os efeitos, trata-se do "rei" de Judá (juízo meu, eventualmente, tem história - a verificar). Mas isso é conversa para daqui a uns meses, quando eu puder enfrentar audaciosamente esse pequeno sítio arqueológico, soterrado de escombros... Mas deixo uma pista: de onde terá saído a expressão bene 'adam ("filhos de Adão" ["filhos", plural, "Adão", singular] - não confundir com "filho de Adão" [Ezequiel, Daniel] e "filhos de homens" [Escritos]), ocorrendo algumas vezes na Bíblia Hebraica como um termo técnico (como o termo "povo da terra"), referindo-se ao grupo social constituído pelo rei e pelos oficiais do rei? Por que são eles chamados de "filhos de Adão"...? Alguma relação com o "Adão", de Gn 1,1-2,4a, ou seja, aquele que tem, de 'Elohim, a incumbência de "dominar" sobre tudo e todos...?
8. (PS. Quanto ao "Eu sou", de Êxodo, será possível estabelecer-se uma data tão adiantada para a redação dessa perícope, mas tão adiantada que já, aí, se deixariam flagrar, com toda potência, o idealismo essencialista e ontológico helênico, de modo que os judeus, helenizados, responsáveis pela redação da fórmula, já se tivessem deixado encantar pela flauta de Pan, digo, de Platão? [31/12/2008])
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
2. O contexto favorece, e, ainda cito Élcio, a interpretação de hayah, aí, como "estar". Yahweh ouve o clamor do povo, observa-o desde "lá de cima", comove-se e desce. Moisés pergunta, todos sabemos, quem ele deverá dizer ao povo que veio resgatá-los. Yahweh não responde "seu nome" - antes, afiança sua presença: "Aquele que estará com o povo", diga a ele que esse é quem veio resgatá-lo. Essa interpretação parece ser ratificada no final de Mateus - eis que estou convosco... Além disso, em Ex 33, Moisés faz Yahweh saber que, caso ele decida não ficar mais junto do povo em sua caminhada, que, então, não faça mais o povo caminhar - ou seja, se Yahweh não "vai estar", nada mais importa...
3. Penso que outro possível equívoco seja nossa recepção dos termos hebraicos tob e ra'ah de Gn 2,4b-3,24. Aprendemos a traduzi-los - e isso fez história! - como "bem e mal". Assim, Adão e Eva teriam "pecado" quando aprenderam o discernimento moral, fato com o qual se consuma, definitivamente, a inocência. Ser "como nós", como "os deuses", nesse caso, seria possuir o disernimento moral - o imperativo categórico ético de Kant...
4. Duvido. O que há de comum aos deuses não é a sua "moralina". Trata-se, a meu ver, do poder de decisão do que lhes pareça bom e mau. Decidir pelo que é bom e pelo que é mau, ser seu próprio juíz, ser o dono do próprio nariz, eis, a meu ver, o "pecado" de Adão e Eva. Ah, eu lhes digo, meus amigos (puro efeito retórico, porque, sabe-se, tudo não passa de hipótese... Mas o efeito retórico é bom, não é?): ah, eu lhes digo, meus amigos, que havia alguém que não queria que "Adão e Eva" decidissem por si mesmos o que era bom e mau. "Adão e Eva" deveriam perguntar a esse alguém, sempre, o que era bom e o que era mau...
5. Não lembra a história de Lilith? Segundo a tradição judaica, Lilith fora a primeira mulher criada por Yahweh. Esposa de Adão, ela não queria deitar por baixo. Queria deitar por cima. Absurdo! Mulher tem que ficar deitada embaixo, e o homem, em cima, sinal de domínio: é assim com a égua, com a vaca, com a cadela... tem de ser assim com Lilith. Comigo, não! Então, moça, rua! E lá vai ela virar demônio do deserto... Para Adão não ficar sozinho, Yahweh cria, então, Eva, que, submissa, como a égua, a vaca e a cadela, aceita deitar por baixo, o homem em cima, o natural de todas as coisas... Lilith queria decidir o que era bom, pra ela. Rua! Onde já se viu...?
6. Há mais termos mal recebidos - a "história dos efeitos", exegeticamente falando, está mais para "história dos defeitos". E tivemos excelentes professores, porque, cá entre nós, querem povo menos modelar para a exegese do que os leitores - logo, escritores - neotestamentários da Bíblia Hebraica?! Não escapa um! Todos excelentes alegorizadores, exímios manejadores do midrash, mas, para o espírito crítico (exegético) moderno...
7. Há muito que fazer, todo um mundo para desenterrar... Deixo uma instigação: aposto minhas fichas, todas, em que a história dos efeitos de Gn 1,1-2,4a não acerta uma única aproximação ao sentido histórico-social da narrativa. Por exemplo: 'Adam ("façamos o homem"), humanidade? Duvido... Para todos os efeitos, trata-se do "rei" de Judá (juízo meu, eventualmente, tem história - a verificar). Mas isso é conversa para daqui a uns meses, quando eu puder enfrentar audaciosamente esse pequeno sítio arqueológico, soterrado de escombros... Mas deixo uma pista: de onde terá saído a expressão bene 'adam ("filhos de Adão" ["filhos", plural, "Adão", singular] - não confundir com "filho de Adão" [Ezequiel, Daniel] e "filhos de homens" [Escritos]), ocorrendo algumas vezes na Bíblia Hebraica como um termo técnico (como o termo "povo da terra"), referindo-se ao grupo social constituído pelo rei e pelos oficiais do rei? Por que são eles chamados de "filhos de Adão"...? Alguma relação com o "Adão", de Gn 1,1-2,4a, ou seja, aquele que tem, de 'Elohim, a incumbência de "dominar" sobre tudo e todos...?
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8. (PS. Quanto ao "Eu sou", de Êxodo, será possível estabelecer-se uma data tão adiantada para a redação dessa perícope, mas tão adiantada que já, aí, se deixariam flagrar, com toda potência, o idealismo essencialista e ontológico helênico, de modo que os judeus, helenizados, responsáveis pela redação da fórmula, já se tivessem deixado encantar pela flauta de Pan, digo, de Platão? [31/12/2008])
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
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