2. Morin começa a falar dos seus antepassados na Judéia ou Palestina. Lembra sua grande diáspora após 135 d.C. com a proibição da Palestina para judeus. Nos séculos seguintes sabidamente o cristianismo se proclamou o ‘novo Israel’. O judaísmo está condenado a circuitos fechados. “A singularidade judaica perpetua-se sob a ação de auto-afirmação de cada crença, que leva uma a negar a outra: quanto mais os cristãos asseguram que o Messias chegou, tanto mais os judeus permanecem à espera do Messias” (p.19).
3. Em breves traços Morin chega aos judeus da Península Ibérica. Por conta de condições favoráveis na Península Ibérica, nos séculos XII a XV, e a despeito das interrupções brutais que seguiram nos anos das grandes ‘descobertas’, estes judeus puderam experimentar e contribuir para um florescimento intelectual na região de cultivo da “última flor do Lácio”. Espanha e Portugal foram, segundo ele, neste período, “oásis de tolerância” (p.21). Havia uma troca intensa: cristãos, judeus, muçulmanos, que resultava em “osmoses culturais”. “Na “conjuntura de Al Andalus, a cultura árabe, irrigada por contribuições helênicas, alimenta também a cultura judaica que, assim enriquecida, desabrochou por meio de seus filósofos, cientistas [...] médicos e conselheiros. Assim, a obra de Maimônides (1135-1204), O Guia dos perplexos, escrita em árabe antes de ser traduzida para o hebraico, une a racionalidade aristotélica à religião mosaica.” (p.22) Um cristianismo tolerante permitiu abertura e troca. “A cultura judaica abre-se a partir do momento em que há tolerância religiosa” (p.23).
4. 1492 marca o ano do banimento dos judeus da Espanha; cinco anos depois, em 1497, segue-se lei similar em Portugal, dando fim ao ‘oásis de tolerância’. O que segue daí por diante na Península será um cristianismo católico fechado, aberto somente para a posterior Contra-reforma. Essa construção chega ao Brasil com as caravelas de Cabral.
5. O banimento leva a conversões forçadas ou por conveniência, dando origem aos ‘marranos’ ou ‘cristãos-novos’ – judeus convertidos ao cristianismo. Muitos destes, porém, continuaram a manter traços de sua identidade. “É chocante que uma identidade judaica muito forte tenha sido mantida por um número significativo de descendentes marranos, às vezes até mesmo duzentos e cinqüenta anos depois da conversão forçada” (p.26). A Inquisição fazia o seu trabalho de detecção de tais sinais e de aplicação das penas corporais e confisco de bens. Por isso, muitos judeus migraram para outros espaços: Império Otomano, Norte da África, Holanda, Itália, França e Alemanha. Os marranos e os pós-marranos começaram por determinar uma ‘dupla identidade’: uma identidade interior secreta judaica, uma identidade exterior oficial cristã. Esta dupla identidade, que fazia colidir mentalmente duas religiões, ainda que tão, próximas podia dar lugar ao ceticismo e ao racionalismo, que brotam quando os espíritos ultrapassam a ambas. Nesta esteira estão pessoas como Michel de Montaigne, Baruch Spinoza, François Sanchez, Uriel da Costa, Juan de Prado.
5. A nova dispersa forçada impulsionou a participação dos marranos também no impulso econômico do mundo moderno. “A força dos empreendedores e comerciantes judeo-gentios dizia assim respeito não somente às suas redes através do mundo, mas também à sua capacidade de transmutar facilmente sua identidade” (p.38-9). “São, ao mesmo tempo, filhos e pais dessa globalização, como outros marranos são na mesma época filhos e pais da modernidade intelectual européia” (p.40).
6. A participação de judeus nas relações econômicas e a integração nas nações ocidentais fomentou a emancipação, dando lugar aos “judeo-gentios”. O ‘século das luzes’ teve Moses Mendelsohn (1729-1786), o filósofo Herman Cohen, em Marburg; seguiram-se Marx, Martin Buber, Franz Rosenzweig, Emanuell Levinas, Simone Weil, Marcel Proust, Stefan Zweig, Freud, Hannah Arendt, etc.
7. “De diversas formas, os judeo-gentios participavam ativamente da formação, do dinamismo e da transformação do mundo moderno. Com e dentro de sua singularidade própria, eles estão ligados, para o melhor e para o pior, à modernidade ocidental. Trabalharam para o desenvolvimento da era planetária, contribuindo para o impulso dos cosmopolitismo intelectual e econômico. Participaram da formação de um mundo metanacional que ao mesmo tempo conserva e ultrapassa as nações” (p.65 – destaques meus).
8. Ao ler o livro, fiquei pensando no meu amigo Osvaldo e na sua tentativa recente de distinguir entre ‘tradição’ e ‘Tradição’. Não consigo concordar com esta distinção. Somos sempre seres, humanos é claro, regidos pela intentio, somos homo hermeneuticus, sempre. Mas estamos, sempre, envoltos em nossa história singular. Aceitamos ou rejeitamos. Recitamos ou criticamos. Ou também: criticamos recitando. Afinal, estamos construindo novos fios numa rede simbólica. Ainda que o próprio Morin conceba, corretamente, que somos ‘possuídos’ por idéias como se fossem seres, nego-me a conceder à ‘Tradição’ essa aura metafísica que, assim me parece, transparece nesta distinção de Osvaldo.
9. Morin, no meu entender, exemplifica esta pertença e a crítica. Pertença e superação. Há simultaneidades. Não há purismos.
HAROLDO REIMER
Um comentário:
Haroldo, muito boa a visão geral q vc passou sobre o livro do Morin. Adoro o Morin.
Vc cita Proust no texto...tb adoro Proust...semestre q vem vou fazer um curso sobre o PENSAMENTO DE PROUST no IFCS com o prof Roberto Machado.
abçs
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