terça-feira, 25 de novembro de 2008

(2008/63) Simultaneidades

1. Edgar Morin, em seu livro O mundo moderno e a questão judaica (Companhia das Letras: 2007 – original francês: 2006), quer fazer uma “reflexão historiada” (p.12) sobre o complexo tema da relação dos judeus com a modernidade. A questão se coloca para ele de forma nova em virtude do processo que Morin sofreu de parte de judeus franceses que viram em declarações de seu artigo “Israel-Palestina: o câncer”, publicado no Le Monde. Neste artigo, em que ele fala da necessidade de diálogo e tolerância entre israelenses e palestinenses, uma apologia ao terrorismo. Morin foi condenado em primeira instância por difamação racial em 2001; apelou e em 2006 ganhou sentença favorável, condenando os acusadores ao pagamento de uma multa. “O fato em si exigiu de Edgar Morin um ajuste de contas consigo mesmo, um judeu marrano que sofreu na pele os efeitos da intolerância histórica e da incompreensão que grassa entre as culturas do mundo”.

2. Morin começa a falar dos seus antepassados na Judéia ou Palestina. Lembra sua grande diáspora após 135 d.C. com a proibição da Palestina para judeus. Nos séculos seguintes sabidamente o cristianismo se proclamou o ‘novo Israel’. O judaísmo está condenado a circuitos fechados. “A singularidade judaica perpetua-se sob a ação de auto-afirmação de cada crença, que leva uma a negar a outra: quanto mais os cristãos asseguram que o Messias chegou, tanto mais os judeus permanecem à espera do Messias” (p.19).

3. Em breves traços Morin chega aos judeus da Península Ibérica. Por conta de condições favoráveis na Península Ibérica, nos séculos XII a XV, e a despeito das interrupções brutais que seguiram nos anos das grandes ‘descobertas’, estes judeus puderam experimentar e contribuir para um florescimento intelectual na região de cultivo da “última flor do Lácio”. Espanha e Portugal foram, segundo ele, neste período, “oásis de tolerância” (p.21). Havia uma troca intensa: cristãos, judeus, muçulmanos, que resultava em “osmoses culturais”. “Na “conjuntura de Al Andalus, a cultura árabe, irrigada por contribuições helênicas, alimenta também a cultura judaica que, assim enriquecida, desabrochou por meio de seus filósofos, cientistas [...] médicos e conselheiros. Assim, a obra de Maimônides (1135-1204), O Guia dos perplexos, escrita em árabe antes de ser traduzida para o hebraico, une a racionalidade aristotélica à religião mosaica.” (p.22) Um cristianismo tolerante permitiu abertura e troca. “A cultura judaica abre-se a partir do momento em que há tolerância religiosa” (p.23).

4. 1492 marca o ano do banimento dos judeus da Espanha; cinco anos depois, em 1497, segue-se lei similar em Portugal, dando fim ao ‘oásis de tolerância’. O que segue daí por diante na Península será um cristianismo católico fechado, aberto somente para a posterior Contra-reforma. Essa construção chega ao Brasil com as caravelas de Cabral.

5. O banimento leva a conversões forçadas ou por conveniência, dando origem aos ‘marranos’ ou ‘cristãos-novos’ – judeus convertidos ao cristianismo. Muitos destes, porém, continuaram a manter traços de sua identidade. “É chocante que uma identidade judaica muito forte tenha sido mantida por um número significativo de descendentes marranos, às vezes até mesmo duzentos e cinqüenta anos depois da conversão forçada” (p.26). A Inquisição fazia o seu trabalho de detecção de tais sinais e de aplicação das penas corporais e confisco de bens. Por isso, muitos judeus migraram para outros espaços: Império Otomano, Norte da África, Holanda, Itália, França e Alemanha. Os marranos e os pós-marranos começaram por determinar uma ‘dupla identidade’: uma identidade interior secreta judaica, uma identidade exterior oficial cristã. Esta dupla identidade, que fazia colidir mentalmente duas religiões, ainda que tão, próximas podia dar lugar ao ceticismo e ao racionalismo, que brotam quando os espíritos ultrapassam a ambas. Nesta esteira estão pessoas como Michel de Montaigne, Baruch Spinoza, François Sanchez, Uriel da Costa, Juan de Prado.

5. A nova dispersa forçada impulsionou a participação dos marranos também no impulso econômico do mundo moderno. “A força dos empreendedores e comerciantes judeo-gentios dizia assim respeito não somente às suas redes através do mundo, mas também à sua capacidade de transmutar facilmente sua identidade” (p.38-9). “São, ao mesmo tempo, filhos e pais dessa globalização, como outros marranos são na mesma época filhos e pais da modernidade intelectual européia” (p.40).

6. A participação de judeus nas relações econômicas e a integração nas nações ocidentais fomentou a emancipação, dando lugar aos “judeo-gentios”. O ‘século das luzes’ teve Moses Mendelsohn (1729-1786), o filósofo Herman Cohen, em Marburg; seguiram-se Marx, Martin Buber, Franz Rosenzweig, Emanuell Levinas, Simone Weil, Marcel Proust, Stefan Zweig, Freud, Hannah Arendt, etc.

7. “De diversas formas, os judeo-gentios participavam ativamente da formação, do dinamismo e da transformação do mundo moderno. Com e dentro de sua singularidade própria, eles estão ligados, para o melhor e para o pior, à modernidade ocidental. Trabalharam para o desenvolvimento da era planetária, contribuindo para o impulso dos cosmopolitismo intelectual e econômico. Participaram da formação de um mundo metanacional que ao mesmo tempo conserva e ultrapassa as nações” (p.65 – destaques meus).

8. Ao ler o livro, fiquei pensando no meu amigo Osvaldo e na sua tentativa recente de distinguir entre ‘tradição’ e ‘Tradição’. Não consigo concordar com esta distinção. Somos sempre seres, humanos é claro, regidos pela intentio, somos homo hermeneuticus, sempre. Mas estamos, sempre, envoltos em nossa história singular. Aceitamos ou rejeitamos. Recitamos ou criticamos. Ou também: criticamos recitando. Afinal, estamos construindo novos fios numa rede simbólica. Ainda que o próprio Morin conceba, corretamente, que somos ‘possuídos’ por idéias como se fossem seres, nego-me a conceder à ‘Tradição’ essa aura metafísica que, assim me parece, transparece nesta distinção de Osvaldo.

9. Morin, no meu entender, exemplifica esta pertença e a crítica. Pertença e superação. Há simultaneidades. Não há purismos.
HAROLDO REIMER

Um comentário:

Joe Black (Joevan Caitano) disse...

Haroldo, muito boa a visão geral q vc passou sobre o livro do Morin. Adoro o Morin.
Vc cita Proust no texto...tb adoro Proust...semestre q vem vou fazer um curso sobre o PENSAMENTO DE PROUST no IFCS com o prof Roberto Machado.
abçs

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