sexta-feira, 28 de novembro de 2008

(2008/71) Um parágrafo de Lévinas


1. Sigo minha jornada de leitura de De Deus que vem à Idéia, de Lévinas. No momento, quero analisar um parágrafo (Jimmy disse que tenho desconstruído Lévinas - não diria tanto, porque o desnudamento do discurso do outro não desconstrói esse discurso, apenas expõe as bases de possibilidade sobre a qual ele se ergue. Ora, Lévinas sabe rigorosamente sobre que bases seus discursos se projetam desde a terra - até os céus. Assim, trata-se apenas de um esforço de auto-preservação de minha parte, porque, quando o cérebro da gente se depara com palavras bem escritas, isso gera em nós um feitiço, um encantamento: só a crítica é capaz de quebrar esse condão. Eis aí: a crítica é um contra-feitiço. O crítico, um bruxo - ou melhor, uma serpente surda!).

2. Eis o parágrafo que pretendo analisar:

2.1 "Esta capacidade que a idéia possui de igualar o dado ou a obrigação em que se encontra de justificar o seu vazio, esta suscetibilidade de referir-se ao ser - mesmo que nesta referência ao ser fizesse apelo a um modo diferente do intuitivo - esta necessidade que o pensamento possui de pertencer ao conhecimento, permanece a medida de toda inteligibilidade? O pensamento que se dirige para Deus está forçado a esta medida sob pena de ser tomado por um pensamento diminuído, por uma privação do saber? Não é possível mostrar que, longe de se limitar à pura recusa das normas do saber, o pensamento que se dirige para Deus - e que a ele vai de um modo diferente daquele que se dirige a um tematizado - comporta modalidades psíquicas e originais - bem além daquelas que um mundo de leis sem jogo reclama, com suas relações de reciprocidade e de compensação, com suas identificações das diferenças - modalidades do desconcerto do Mesmo pelo Outro, modalidades próprias e originárias do a-Deus, em que a aventura ontológica da alma se interrompe, em que diante da Glória, a idéia do ser se eclipsa (talvez, rebaixada, precisamente em Deus, à condição de um simples atributo) e em que, no des-inter-essa-mento, se apaga a alternativa entre o real e o ilusório?" (Emmanuel Lévinas, "Transcendência e Mal", em De Deu que vem à Idéia, p. 169).

3. O que devo respeitar em Lévinas é que ele não esconde, jamais, o fato de que sabe tratar-se o que ele chama de "dicurso que se dirige para Deus" de um caminho que transgride as regras (ocidentais/consensuais - também ele o diz) do "saber". Na página anterior, Lévinas iniciara um argumento, dando a saber que Kant teria sido o primeiro a promover a disjunção conceitual entre "pensamento" e "saber", de modo que o "pensamento de/para Deus" não podia, necessariamente, ser considerado "conhecimento". É à luz dessa afirmação epistemológica do primeiro Kant que Lévinas redige o parágrafo citado. Ele aceita o que Kant diz, e, então, propõe outro regime para o pensamento de Deus - para o pensamento "de Deus que vem à idéia"...

4. Aceito a proposta, Lévinas. Mas vamos, cá entre nós, dar a ela o nome adequado: mito. Se - e somente se, eu sei - partirmos do postulado epistemológico kantiano (e é essa a fortíssima razão pela qual a teologia envergonhada, mas seduzida, tenta manter-se na ágora "moderna", apelando, justamente, para a supressão de Kant - em linguagem esportiva: Kant é o homem que tem que ser vencido! Viva a pós-modernidade, viva os discursos suspensos, viva a abolição de toda a crítica, viva os acordos pequeno-burgueses de etiqueta à mesa, viva o solipsismo, viva a auto-lambeção dos gatos! Ah, mas no recôndito das catedrais, no interior da penumbra dos púlpitos-altares, separam-se, homileticamente, os deuses dos demônios... lá, a pós-modernidade não entra. Nem a República), o pensamento não é uma categoria de conteúdo, não é, enquanto fenômeno, enquanto emergência (e não, ainda, conteúdo e ferramenta), algo que o homem faz (também não é algo que se faz no homem, como diz Heidegger da Linguagem), mas é algo com o que o homem se faz e que, ao mesmo tempo, faz-se no e desde o homem, recursivamente, porque é o pensamento, a consciência, a recursividade da consciência de si sobre si, que permite ao homem abrir mão, paulatinamente, do controle biológico de seu corpo, e de assumir, na História, uma existência teleológica.

5. A partir do pensamento, enquanto fenômeno, desobram-se, materializam-se, intenções pragmáticas humanas. Aristóteles e Kant já o haviam dito: são três - querer, sentir, saber. Pode-se dizê-lo sob outras duas classificações (questão de terminologia, apenas): volição, afeição, cognição, política, estética, heurística. Pode-se dizê-lo, ainda sob um modelo relacional do si com: outros sis (querer, volição, política), o próprio si (sentir, afeição, estética) e a hylé [o "mundo", mas o mundo físico] (saber, cognição, heurística). No mínimo deveríamos admitir que se trata de um projeto epistemológico ocidental, cuja validade, contudo, não deveria reduzir-se à ideologia planetária, mas à crítica de seus fundamentos - para quem aceita a regra do jogo, claro, e, destarde, crê na existência dos fundamentos.

6. Esse pensamento que Lévinas pretende - pretende, é o máximo que posso admitir - dirigir-se para Deus, que é? Saber? Ele, Lévinas, sabe que não - porque ele fala ao Ocientel intelectual, e sabe que esse Ocidente intelectual sabe que pensar não é, kantianamente, conhecer - pensar é, apenas a condição do conhecer, condição humana do conhecer humano. Todo conhecimento é pensamento. Nem todo pensamento é conhecimento. Restam, pois, duas alternativas.

7. Primeira alternativa ao pensamento que se dirige para Deus - estética. Feuerbach está certíssimo, Lévinas - e aí você tropeça em seus próprios pés, porque, com a direita aceita a regra do jogo e, com a esquerda, recusa suas conseqüências: "que esta transcendência se tenha produzido a partir da relação (horizontal?) com outrem não significa nem que o outro homem seja Deus nem que Deus seja um grande Outrem" (Lévinas, op. cit. p. 151). Não? Bem , Lévinas, se a regra for Kant, significa, sim. Não significa, com isso, dizer que não haja nada para além disso. Todavia, significa que isso é o máximo até onde o conhecimento pode chegar. Para além, o pensamento pode ir, mas o conhecimento pára - e a comunidade de interpretação (Karl-Otto Apel) também pára aí). Feuerbach respeitou as regras e concluiu que tudo - tudo, absolutamente tudo, ah, liberdade terrível - que qualquer um homem, qualquer uma mulher, disser sobre "Deus", é de si que diz, de sua alegria, de sua dor. Estética. Encontro hipostático de si consigo mesmo. É na alienação de si que a estética se faz conhecimento. Contra Marx, Habermas quer-me alienado de mim - "racionalidade expressiva". Não: expressividade, fenômeno de pensamento-afeição, fenômeno de pensamento-estética, mas nada, absolutamente nada de "saber" (conquanto não haja estética dissociada dos níveis de saber e de querer).

8. Segunda alternativa - política. O pensamento que se dirige para Deus faz-se desdobrar em recurso platônico de controle social. Jimmy, se não transformar sua Tese em "literatura", se a mantiver na esteira do projeto original, política, é aqui que toda a sua fúria crítica deve trabalhar: o uso político do mito, o uso político do pensamento mítico no Cristianismo e no Ocidente. Deus, o maior de todos os marionetes (o único que talvez lhe rivalize seja o Diabo: há momentos em que ele até se sobressai! Saramago já descreveu o fenômeno, na cena do lago, Jesus, Deus e o Diabo a conversarem, um a pedir o perdão, e um Deus indignado, recusando-se ao perdão, porque, sem Diabo, não há Deus).

9. Haroldo, aqui voltamos ao ponto: Tradição. E se trata de um fenômeno muito interessante - na forma de resíduos dóxicos da estética, a tradição (com "t" minúsculo mesmo) faz-se permear de expressões, testemunhos, de experiências, como um mar de plânctons, uma lufada de pólens a flutuar, à cata de sexo. Uma sociedade lúcida e madura, lidaria com tais expressões como um caleidoscópio aberto, uma plataforma dialogal, a partir do "valor" das auto-compreensões subjetivas (nos limites das liberdades individuais, à luz da manutenção da comunidade). Mas a política pode tornar-se um demônio - pior, pode tornar-se Deus. Aí, aquele pensamento que se dirige para Deus pode tornar-se a mão operacional (Pérsia, A República - A Cidade de Deus) da "teocracia" - hipocrisia - da "hierocracia".

10. Lévinas, certamente, tenta o viés da estética. Mas, ai, aí, ele tropeça, porque quer transformar a "face do outro" em portal tridimensional para a Transcendência, para o Outro, para o Deus - e o da Bíblia. Mais - ele operará o discurso no sentido de propôr um modelo para a trancendência humana, para sua legitimação. Política. É o que ocorre, invariavelmente, com aquele que, dissociado de um controle pragmático severo de sua consciência e intenção, toca na pele de Deus - automaticamente, transforma-se em Deus Cosmogônico, vem-lhe à mente a Idéia de construção da sociedade, de Paraíso, de "reforma", de intervenção social para o "bem", ressalve-se, que seja.

11. Eu diria que não se trata de um feitiço do termo "Deus". Honestamente, penso que consigo operá-lo em minha mística, sem que, contudo, isso se transforme em pulsão "ética" ("profética", faz-me rir) de transformação do mundo por meio dessa idéia. Assumi em minha crítica que não tenho - jamais! - o direito de propôr relações sociais com base, em que sentido for - inclusive na metáfora, no estilo de "usar" os termos Deus, Jesus, Espírito Santo - Trindade! - como modelos de sociedade (e isso independente de haver a realidade apontada do "outro" lado - são as idéias, as coisas reais, os seres de espírito, e elas são eficientes, sempre). Trata-se, contudo, meu juízo, de um vício da civilização cristã, um vírus em nós, um feitiço arquetípico, que só se cura por meio de Feuerbach injetado cru na veia, mas como conhecimento que se implanta na mente, eficientemente, conseqüentemente. Ah, sim, Deus - perdão - a idéia "Deus" vai espernear, ferir-nos, porque sabe o despoder a que se submete nesse caso: a Tradição, ver-se reduzida à condição de tradição? Sangue! Que esperneie. Paguemos o preço, que desintoxicação implica em crises de abstinência. Ou é isso, ou é a ilusão de que a idéia Deus é neutra, inocente, pura, os homens maus é que usam a idéia Deus para o mau, ao passo que nós, homens bons, mulheres boas, nós, os bons, para o bem.

12. Nos céus, ri-se, desgradadamente, a Idéia. Na terra, lambe os beiços a Tradição.


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

Nenhum comentário:

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...

Sobre ombros de gigantes


 

Arquivos de Peroratio