quinta-feira, 27 de novembro de 2008

(2008/70) Da tradição - dos termos


1. Recebo seu post, Haroldo (2008/69 - Concordâncias), com um composto de surpresa e de alegria. Surpresa, digo-o rápido, não pelo fato de você ter chegado a um acordo comigo, mas pelo fato de que tenha sido tão rápido - esperava que ainda terçássemos armas através dos trigais, como Brancaleone e seu "inimigo", até caírem, ambos, exaustos, ceifado todo o campo em volta... Alegria, porque não contive uma única palavra, não sopesei termos, não usei a fita métrica, desnudei-me e disse o que pensava ser necessário, fosse você Haroldo Reimer ou não - e, que maravilha! - foi exatamente assim que nos "encontramos".

2. Estou enfadado do tom "monocórdio", monótono, da literauta teológica brasileira - talvez seja assim também a estrangeira: só se fala, só se escreve, cada qual a dizer o que lhe vem à cabeça, e, não importa a montanha de impropriedades (epistemológicas, metodológicas, formais, lógicas, retóricas), ninguém fala nada, como se, ter aquilo sido escrito, ou não ter, diferença alguma faz, artigos como que escritos - apenas! - para contar pontos na lattes, e, aqueles de verdadeiro conteúdo, passando em branco, merecendo, quando muito, uma resenha comportada aqui, uma citação ali, sem que, contudo, se produza verdadeiro debate, verdadeira "batalha". Ah, essa aura retórica de pós-modernidade, esse acordo do dizer qualquer coisa pela obrigação de dizer, de ter que dizer, não importa o que, essa convenção a-crítica, cavalheiresca, comporativista... Bel, ontem mesmo, lendo seus e meus posts - Jimmy, quem sabe, ressuscita - sim, porque está morto da silva - ia dizendo que para isso inventamos Peroratio. É para pôr sangue aqui, para deixar pedaços de carne como quem cruza campos de arame farpado. Não é uma casa de chá, o Peroratio, é uma arena, uma ágora (agorá, como o quer a tradução de Detienne). Aqui, só se diz o que se endereça à crítica - honesta, verdadeira, sincera, profunda, sem malícia, sem maldade, mas aquela de pôr o dedo, fundo, na chaga, sem dó da dor. É a dor que se quer.

3. Nossa primeira prova foi vitoriosa. Para nós dois. Não considero que ela esteja, de todo, resolvida, mas penso que os clarões dos primeiros canhões iluminaram bem a noite da blogosfera monotônica. Dois homens se enfrentaram, e aprenderam a se enfrentar, e a ter coragem de pensar e de dizer. Isso é aprendizado. Mas - rápido o digo - se, de um lado, há aprendizado, Haroldo - e há - não é verdade que haja ensino. Não estou aqui para ensinar. Eventualmente, para aprender. Logo, se aprendeu alguma coisa, não foi porque ensinei - que não acredito em ensino. Foi porque você era maior do que a idéia que você tinha ou pensava ter, e maior do que a idéia que você julgava que eu tinha.

4. Jogo RollerCoaster Tycoon, um simulador de parque de diversões. Num dos brinquedos que você constrói, o labirinto, cabem até dezesseis bonequinhos/visitantes (é uma delícia vê-los andando pelo parque, divertindo-se nos brinquedos). Eles entram no labirinto, caminham por algumas galerias e, logo, impacientes, começam a olhar por cima do muro, para ver o que tem do outro lado. Penso que é assim que vamos discutindo - ambos, caminhando pelo labirinto, e, às vezes, parando, esticando pés e pescoço, olhando por sobre o muro. É preciso ser "maior" do que o muro, esticar-se sobre ele, aprender.

5. É preciso que continuemos a pensar a respeito do tema "tradição" versus "Tradição". Confesso que ainda não vejo a "necessidade" de substituição dos termos, mas vou refletir sobre isso. Digo que não vejo, ainda, a necessidade, porque, na prática, não há diferença nenhuma entre os conteúdos de uma e de outra, sendo que ambas se fazem constituir de conteúdos noológicos. A diferença é o modo como uma e outra se pretendem relacionar com o homem e a mulher concretos. A tradição-com-t-minúsculo é aberta, dialogal, fecundando e sendo fecundada pela relação temporal com a sociedade que a engendra e que por ela é engendrada - ela é a própria condição da espécie humana, inexorável, ou seja (adoro essa definição do dicionário): que não se pode mover a rogos... Já a Tradição-com-T-maiúsculo sequer é necessária, pelo contrário, é necessário que ela sufoque até a morte, ela é cancerígena, ela é um câncer que nasce naquela condição ecológica. A tradição é, assim, por isso, ecológica. A Tradição, progrom noólógico, patologia megalomaníaca e sacerdotal de tipo platônico.

6. Tentemos uma aproximação pragmática - o que é a tradição? Ela é a atualização de pragmática heurística? Não. Estética? Não. Política? Estou inseguro - responderei, contudo, "não". Ora, mas como? Não há uma quarta categoria, sabem-no Aristóteles, Kant, Lévinas. Então? Penso, então, que a tradição é a contraparte noológica da "terra firme" sobre a qual o corpo material e biológico do homem caminha - seu corpo, na terra, seu pensamento, na tradição, e com a tradição, o homem, a mulher, o Homo sapiens, então, cava a terra, com a qual, por sua vez, "suja" a tradição. Lembremo-nos que, acima de tudo, o Homo sapien é um ser de líquidos, que escorrem-lhe por todos os orifícios, desde dele, e para fora, e desde fora, e para dentro. Tenho usado a metáfora do caramujo e de sua gosma, a gosma com a qual o Homo sápiens recobre a terra para, por meio dela, da gosma, sobre a terra poder andar. É sobre o que anda o caramujo? Sobre a terra?, sobre a gosma? Escolha um, e erra! Escolhe, pois, os dois - ao mesmo tempo. Por isso não posso, jamais!, aceitar as teses não-fundacionais (nostalgia platônico-medieval), tanto quanto aprendi a não aceitar as teses apenas-materialistas. Morin, meu gênio preferido - obrigado!

7. E a Tradição? É essa gosma? Não - mil, mil vezes mil vezes: não. Ela, sim, é pragmática - é produto teleológico, intencional, programático. Heurístico? Não. Estético? Não. Político? Sim. Político. Está por trás dela a vontade de domínio - seja lá em nome do que for, até do Bem, de Deus, do Diabo. Trata-se, sempre, da apropriação indébita da tradição, de um recorte do medium hermenêutico, que, sendo programaticamente petrificado - tu és Pedro -, mumificado, monolitizado, e, em seguida, elevado à condição de norma e lei, passa a operar sobre a consciência heterônoma dos sujeitos humanos, degradados à condição de sub-humanos: humano não é o que sai da vagina da fêmea - esse aí, sujo de sangue e da gosma amniótica é mamífero, está a caminho, precisa, ainda, parir-se a si mesmo. O fiat vaginal é "apenas" uma cosmogonia física, mecânica, biológica, milagre comum à vida, desde o rato até a orca. Falta a esse Marduque, a esse Yahweh, enfrentar o Dragão da autonomia - matá-lo, vencê-lo, e criar um mundo: o seu, aquele que, com propriedade - que Lévinas chama de genial, e quanta força o faz para reconhecê-lo! -, Heidegger (mas só o primeiro - o segundo aborta).

8. Essa Tradição, pois, é a mesma Figura do Deus sacerdotal, do Deus platônico. Todas a vezes que eu repetir, e essa será, quem sabe, a sétima?, que Nietzsche chamou a nós, cristãos, com propriedade, de "a besta humana de carga", é a essa idéia de Deus/Tradição (tolos somos - de Igreja/Tradição) que se refere, e eu também. A Tradição não é a canga, apenas, ela é aquela que nos junge, que nos põe a cangalha nos ombros, e lá vamos nós, burros, literalmente, a carregar, felizes, boninos, a cruz... Crime de lesa-humanidade! E, porque se faz em nome de Deus, crime de lesa-divindade... Mas, para quem come a carne do povo (cf. Sl 53), Deus nada significa.

9. Minha carne abomina a Tradição. Não sei que reação teria, diante dela, se me forçasse. Não sei se conseguiria dar pão a meus filhos, jungido por ela. Talvez daria, porque sofreria pelo pão, mas como a ter vermes a me comer os ossos, a carne, a dignidade - com a mão ofertaria minha carne a meus filhos, mas não pdoeria olhar nos olhos deles. Deus me proteja de ter de enfrentar a Tradição, olho no olho, e ver-me obrigado a sacar da lança. Minha carne treme, literalmente, diante de pessoas que se servem dela. E, Haroldo, seja quem seja - da direita (as igrejas evangélicas e católicas estão repletas de atualizações de Tradições de direita) ou da esquerda (há muita prática pretensamente libertadora que, em última análise [ri-se a Tradição!], só faz aumentar o nível de heteronomia dos oprimidos, que liberdade é algo que se conquista a começar de dentro, caso contrário, troca-se, apenas, de senhor). O problema não é Deus-Direita ou Deus-Esquerda - o problema é Deus.

10. Já a tradição, ah, ela é a nossa casa. Pense em todas as emulsões de seu corpo, amigo, do suor às ejaculações, o que exprime profundamente nossa pertença à cosmogonia aqúatica, a pertença a esta terra. A tradição é o equivalente disso. Ora, amigo, são coisas que produzimos, usamos, fazemo-nos, refazemo-nos, e vamos seguindo. Não guardamos suor e sêmen, nossas fêmeas não têm relicários para suas lubrificações íntimas - são pedaços de nós, que lançamos à terra, para o encontro com o corpo do outro, para o equilíbrio de nossos corpos, para a manutenção de nossa temperatura no seu limite - ah, e o sexo ferve até o limite da combustão!, como as idéias fracas, lúcidas, que querem morrer (de amor), para viver amando.

11. A tradição não é coisa para se grudar a ela. Nada como um bom banho antes e outro bom banho depois... do amor! Para, no dia seguinte, cheio de memória - ah, mas também de desejos e fantasias! - re-inaugurar o Ano Novo, a cosmogonia de Eros.

12. Aí está, Haroldo - preparei o enredo para o dizer com o máximo de pertinência: tradição é sexo, Tradição, estupro. Estupro é sexo. Mas é a forma mais hedionda de sexo - e tanto, e tão ignominiosa, que transformou o que era doce e bom em dor profunda inimaginável, a ponto de poder tornar imprestável para a delícia a pessoa violentada. A Tradição é estupro - se não do corpo, daquilo que é mais telúrico que o próprio carbono, que, Nietzsche já o sabia, a consciência é parida pela carne.


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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