quarta-feira, 26 de novembro de 2008

(2008/65) Das abstrações


1. Haroldo, continuo cá a pensar no que tu escreveste. Que (arti)manhoso!, sete - o número da perfeição - parágrafos resenho-historiográficos para, ao cabo, zapt!, dar-me o bote!, e logo tu que tanto gostas de "introduções" e "conclusões". Ai!, se não me tenho cá coração sadio...

2. Bem, como deves ter percebido, minha reação, ontem, foi imediata - outra vez, no calor da batalha. Um soldado sob mira ou se enfia na trincehria, tremendo, ou revida. Hoje, contudo, mais tranqüilo (!), volto à carga. E vou fazê-lo "à moda", isto é, escavucar na base de cada termo que você usou em seus oitavo e nono parágrafos - as balas de prata que puseste no tambor de nove balas...

3. Você disse:

3.1 "8. Ao ler o livro, fiquei pensando no meu amigo Osvaldo e na sua tentativa recente de distinguir entre ‘tradição’ e ‘Tradição’. Não consigo concordar com esta distinção. Somos sempre seres, humanos é claro, regidos pela intentio, somos homo hermeneuticus, sempre. Mas estamos, sempre, envoltos em nossa história singular. Aceitamos ou rejeitamos. Recitamos ou criticamos. Ou também: criticamos recitando. Afinal, estamos construindo novos fios numa rede simbólica. Ainda que o próprio Morin conceba, corretamente, que somos ‘possuídos’ por idéias como se fossem seres, nego-me a conceder à ‘Tradição’ essa aura metafísica que, assim me parece, transparece nesta distinção de Osvaldo. 9. Morin, no meu entender, exemplifica esta pertença e a crítica. Pertença e superação. Há simultaneidades. Não há purismos" ((2008/63) Simultaneidades).

4. Quanto ao fato de tu "não conseguir[es] concordar com esta distinção", bem, recorda-te das introduções e da teologias do AT: são useiros e vezeiros, com louváveis exceções, em usar a expressão (ou similar): "Israel cria em", "Israel concebia", "Israel fez". Bem, o nome disso é abstração. Nunca houve "Israel" nesse sentido. Havia "Israéis". Não apenas os de esquerda, de direita e de centro. Também esses. Mas dentro de cada espectro desses, havia os sub-Israéis, até aquelas porções mínimas, observáveis caso a caso. É mais ou menos como aquela velha expressão: "porque os brasileiros...", e lá se solta uma generalização, uma abstração. O mesmo, a rigor, e ainda mais fortemente, vale para a expressão "Igreja" como sujeito - outra abstração. E, naturalmente, é onde quero chegar, "tradição".

5. Deve-se distinguir entre o conceito - abstração - de "tradição", enquanto "conceito", e o que de fato ocorre, nesse sentido, na sociedade. Não há uma tradição. Nunca. Nem há uma super-tradição, dentro da qual as menores, locais, estejam. O que há são os imprintings (cf. Morin, O Método) situados, locais, específicos (pense na questão sexual que envolve a educação de filhos - o que aí é tradição: o que os pais ensinam?, o que os colegas da rua?, os da escola?, a escola, a "igreja"?, o Estado? Ora, não é tudo isso, mas, ao mesmo tempo, nada disso, já que o menino, a menina, tem de aprender a lidar ardilosamente com cada imprinting desses, cada qual querendo consubstanciar-se como Idéia na cabeça da criatura?). O que há de comum entre todos os exemplares do Homo sapiens é que são seres de tradição - o que significa que abriram mão, em sua jornada evolutiva, do controle absoluto de si por meio do DNA. Na prática, cada "tribo", cada grupo, cada bairro, cada cidade, constrói suas diferentes tradições, e são essas, pequenas, específicas, concretas (múltiplas mesmo nesse nicho ecológico), e não aquela, abstrata, conceitual, "simbólica", que, de fato, "co-formata" (e é co-formatada por eles) os indivíduos sob a sua influência. Assim, concordarias comigo que não há uma coisa chamada "tradição", no mesmo sentido em que não há uma coisa chamada "humanidade", o que há é o conjunto necessariamente dissociável e dissociado das tradições locais e concretas, bem como das pessoas histórico-sociais, biológicas e psicológicas, situadas?

6. Se concordares comigo, então sigamos. Ora, o que acontece num caso como Nicéia? O que me dizes de Nicéia? Primeiro, qualquer tentativa de tratar "simbolicamente" Nicéia é desconsiderar tudo quanto sabemos sobre programas políticos - Nicéia é Washington em todos os sentidos, ou Brasília, se preferir. Ali, uma "tradição" - ou seja, uma determinada porção dentre um conjunto inumerável de "cristianismos" igualmente tradicionais, mas díspares entre si, uma "tradição" articulada e manejada por "homens" do clero e do império autoproclama-se a tradição, ao preço de sufocar todas as demais, de impôr-lhes o que Yahweh impôs a Miriam, se me entende, que se cale, leprosa, e, rabo entre as pernas, meta-se em seu lugar - ou, se não, que permaneça para sempre fora do arraial, que, se um pai cuspido na cara não perdoaria, quanto mais Deus, onfendidíssimo. O que temos aí, nessa maravilhosa - debocho, percebes? - Nicéia? Não a "tradição" homogênea, simbólica (Weber? Bordieur?); tão pouco, "ainda agora", a tradição local, circunscrita a uma comunidade - mas a Tradição, auto-divinizada, teocratizada, tornada Una - engodo, embuste, esbulho (cf. arts. 926 a 931, do Código de Processo Civil).

7. A "tradição" - enquanto expressão cultural e inexorável (enquanto rotina, não conteúdo) de uma comunidade: é dessa que falo com leveza. Nenhum povo a tem igual ao outro - e "povo", aí, vai para além da distinção entre brasileiros e argentinos, por exemplo, porque há muitos Brasis dentro do Brasil. Uma família - quantas tradições aí! A "tradição" - como parece transparecer (corrija-me) de seu parágrafo oito, enquanto expressão abstrata, conceitual, "lingüística", essa, a meu ver, não existe, como não existem nem um "Israel" nem uma "Igreja" enquanto abstrações - conquanto conceitos encessários para a referência ao particular, que, de fato, é apenas o que "existe". Já a Tradição, essa existe, e ela é, sem tirar nem pôr, a apropriação violenta do direito de grupos histórico-sociais manterem suas próprias tradições pelo simples fato de um maluco qualquer, em nome de Deus, julgar que a "sua", a "tradição" abstrativo-platônica, tenha de se sobrepor. Essa Tradição surge sempre a partir de uma tradição situada, que, hipertrofiando-se, inflacionando-se, ontologizando-se, sufocando as demais, todas, como árvore assassina, diviniza-se. Ora, a "tradição cristã", nesse sentido, é, antes de tudo, essa "Tradição" assassina de tantas outras - onde ela chega, mata: Boff não o dise quanto aos índios meso e sul-americanos? "Ai, cristianizaram-nos - mataram nossa flor!". Foi a "Tradição" - política e maldita - do Cristianismo de Platão e Constantino, controlando a cabeça, a mão e a espada de sujeitos entregues a seu poder. Dentro dele, à sua margem, no centro, em cima, embaixo, quantas "tradições" sobrevivem, escondidas, como os "marranos"! Tu o escreveste, Haroldo - como não consegues ver? Ou - insisto, estamos falando de coisas diferentes? Diga-me, por favor.

8. Morin fala sobre isso quando dicute o "comunismo marxista". E lamenta que tenha ocorrido a ele o mesmo que ao Cristianismo - a petrificação, a mumificação, a monolitização - a transformação de uma "tradição" em "Tradição". É, em todos os sentidos, sem precisar mudar uma única vírgula, o que Detinne diz de A República, de Platão: como fabricar uma Cidade Bela, um Admirável Mundo Novo. Huxley, com doses de álcool acrescentadas à fórmula genética da fábrica de embriões. Platão, com mitos - com "Tradição".

9. É preciso, eu diria, risco meu, que, desde dentro dessa "Tradição" - e o Cristianismo é, antes de tudo, Isso -, denunciemos, duramente, Isso. Alternativamente, pode-se considerar uma boa prática a utilização Disso para a libertação, se me entende. Sabe o que eu penso disso - não pode haver libertação na alienação, não pode haver salvação que não por meio de si mesmo (salvo como paciência, consciente de que se espera - e o quê?, que a Tradição morra por Si mesma). Usar Roma contra Roma, Wittenberg contra Wittenberg, a Tradição contra a Tradição, é fazer o serviço que a Idéia espera de nós: quanto mais o tumor é alimentado, e não importa se morrem os da direita ou da esquerda, o que importa é a morte sacrificial, tanto mais Ela impera. É Ela, contudo, que tem de morrer, para que as "tradições", locais, livres, dialogais, possam, de fato, verdadeiramente, emergir. Idéias fracas, tradições fracas... Morin.

10. Para encerrar. Consulta tua Bíblia. Vá ao Sl 53, último versículo. Lerás, aí, quase que sem importar qualquer que seja a versão que consultes, "salvação", "libertação", "livramento". Vai ao hebraico, agora. Lá, lerás "plural" - "salvações". Porque os tradutores não respeitam esse plural? Hipótese: porque projetam aí a Salvação. Erro crasso, grave, no estilo dos "ídolos", de Bacon. Falam-se, aí, das salvações cotidianas, do cuidado que o rei deve ter com o povo, na sua figura-retórica de "pastor", que Sião deve ter com as populações. Mas os tradutores estão um tanto quanto cegados - risco de todos nós - por sua própria "Tradição", tão dialogais consigo mesmos que esquecem de prestar atenção na tradição do outro.

11. Insisto - há tradições, locais, situadas, concretas, que nos moldam e por nós, grupos locais, situados, concretos, são moldadas. Há uma infinidade de tradições e de redes tradicionais, intercomunicantes, conflituosas, simbióticas, complexas (a palavra "símbolo" é útil, mas não enquanto conceito-chave: ao lado dela, o contra-símbolo, o diábolo, a crítica, é igualmente necessária - Weber, sim, Bordieur, sim, mas Marx, também, Detienne, sempre!) . Uma delas, eventualmente - é muito comum - hipertrofia-se politicamente, e sufoca as demais (tenta!): aí, nasce a Tradição, a Força, a Imposição, o Dogma, a Hipocrisia. O que não, há, Haroldo, é o que eu acho, e vejo, mas posso estar enganado, é questão de discutirmos, é uma tradição simbólica como liame de uma humanidade ou de um recorte dela, a cristã, eventualmente. Não, isso é resíduo mitológico da Tradição, eventualmente, nosso porto mítico para segurança pessoal. É uma saída. Mas - será ela "real"? De novo - qui prodest?


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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