quarta-feira, 19 de novembro de 2008

(2008/56) Esse Lévinas...


1. Jimmy está ocupadíssimo, por isso não escreve no blog. Ontem falamos, e tudo se esclareceu. Muita natação, na PUC ("praticamente um Phelps), muita praia ("Menino do Rio!) e, duríssima tarefa, umas aulas do doutorado. Assim que se desvencilhar de tantas questões de inexorável urgência, talvez - urgências sempre se põe à frente da fila, essas malandras... -, talvez, eu dizia, voltemos a ler Jimmy.

2. Enquanto isso, o idiota aqui fica lendo Lévinas, que Jimmy, entre uma braçada e umas paqueradas na orla, me manda ler: "Você devia ler Lévinas!". Lendo Lévinas na cama, no ônibus, no metrô, na sala dos professores, até diante do computador, enquanto espero um download. Tem algo de muito errado nisso, não, seu espertalhão?

3. Em todo caso, lembremo-nos de Oscar Wilde - já se é pobre, e se, ainda por cima, vai-se gastar tempo com reclamações... Pois bem, ontem, lendo o primeiro artigo, "Deus e a Filosofia", da "Parte II - A Idéia de Deus", encontrei um parágrafo muito, muito interessante.

4. Prego-lhes uma peça, amigos, estejam alertas! Alertas, leiam as seguintes linhas que, juro!, transcrevo literalmente:

4.1 "Se experimentamos uma necessidade de autotranscendência, é porque de algum modo obscuro, e apesar de nossa ignorância consciente, sabemos quem realmente somos. Sabemos (ou, para ser mais explícito, alguma coisa no nosso íntimo sabe) que o fundamento de nosso ser individual é idêntico ao Fundamento de todo o conhecimento e de toda existência".

4.2 "(...) Quando o eu consciente transcende a si mesmo, o Ego essencial está livre para perceber, em termos de uma consciência finita, a verdade de sua própria eternidade, juntamente com a realidade correlata de que cada particular, no mundo das sensações, partilha da intemporalidade e do infinito. Isso é libertação, é iluminação, é a visão beatífica, na qual as coisas são apreendidas no que são 'em si mesmas', e não em relação a um eu odioso em seus desejos ensaciáveis".

4.3 (...) "A experiência total, que liberta e revela, é a da eternidade no tempo".

5. E aí? O que acham desse discurso? Infinito e Identidade - eis a pedra de toque. O "eu pessoal" ("odioso") é idêntico ao "Ego essencial" - o Infinito, o Eterno, no finito, no "aparente".

6. Talvez já tenham caído na armadilha que lhes armo. Jimmy, também tu terás caído? Se caíste, rio duas vezes!

7. Bem, permitam-me apelar para a regra evangélica, e convidar-lhes a andarem mais uma milha. Brindo-os com essa citação:

7.1 "A consciência já rompeu com esse des-interessamento. Ela é identidade do Mesmo, presença do ser, presença da presença. É preciso pensar a consciência a partir dessa ênfase da presença. A presença só é viável como um retorno da consciência a si mesma, fora do sono, e, por aí, a consciência remonta à insônia; mesmo que este retorno a si mesma, à guisa de consciência de si, nada mais seja que esquecimento do Outro que desperta o Mesmo do interior, mesmo que a liberdade do Mesmo nada mais seja que um sonho desperto. A presença só é viável como incessante retomada da presença, como incessante re-presentação. O sem-cessar da presença é repetição, sua retomada, sua apercepção de representação. A re-tomada não descreve a re-presentação. É a re-presentação que é a própria possibilidade do retorno, a possibilidade do sempre ou a presença do presente. A unidade da apercepção, o 'eu penso' - a descobrir na re-presentação - à qual, assim, se devolve uma função, não é uma maneira de tornar a presença puramente subjetiva. A síntese realizada pela unidade do eu penso, por trás da experiência, constitui o ato da presença ou a presença como ato ou a presença em ato, Movimento englobante realizado pela unidade nucleada em 'eu penso', o qual, sinopse, é a estrutura necessária à atualidade do presente. O conceito operatório do idealismo transcendental que é a 'atividade do espírito' não repousa sobre uma empiria qualquer do desdobramento da energia intelectual. É, sim, a extrema pureza - extrema até a tensão - da presença da presença, que é o ser em ato aristotélico, presença da presença, tensão extrema que vai à implosão da presença em 'experiência feita por um sujeito', em que precisamente a presença retorna sobre si mesma realizando-se plenamente".

8. Longo, não? Mas necessário para compreender que o que ele diz (7.1) é, a seu tempo e modo, rigorosamente o mesmo que o dito nas citações em 4.1, 4.2 e 4.3. Agora, a revelação da traquinagem que fiz. Aqueles três parágrafos (4.1, 4.2 e 4.3) são um citado de Aldous Huxley, Os Demônios de Loudun, Círculo do Livro, p. 74-75. Não são declarações, in litteris, de Lévinas. Contudo, diz-se, lá, o mesmo que, aqui (7.1), quem diz é Lévinas.

9. Huxley é um famoso "esotérico" (no sentido cult do termo), além de pesquisador e romancista (Admirável Mundo Novo, As Portas da Percepção, Entre o Céu e o Inferno). É autor de Filosofia Perene, que registra o que eventualmente poderia ser tornado público da "Grande Tradição" - recomendável, sua leitura. Os três parágrafos que citei foram extraídos de um excerto interno ao Os Demônios de Loudun, em que Huxley procura discutir, de forma literariamente magistral! (uso o excerto para ensinar pessoas a lerem) a "necessidade humana de autotranscendência". Porque, para Huxley, o "você" é o "Outro": "o objetivo, o fim, o desígnio final de nossa existência é dar espaço no 'você' para o 'Outro', é afastar-se para que o fundamental possa vir à superfície de nossa consciência; é morrer tão definitivamente que possamos dizer: 'Estou crucificado com Cristo; apesar disso, estou vivo; contudo, não eu, mas Cristo vive em mim" (p. 74 - nada de contentamentozinhos pequenos-cristãos, pessoal: Cristo, aí, é pura peça de Lego. Imediatamente antes, Huxley dissera: "sabemos que Atmã (a mente que adota o ponto de vista temporal) é o mesmo que Brahman (a mente em sua essência eterna. Sabemos de tudo isso, mesmo desconhecendo as doutrinas nas quais a Verdade Fundamental tem sido relatada". "A Verdade e o Dever fundamental podem ser formulados, de forma mais ou menos adequada, no vocabulário de todas as religiões mais importantes. Na linguagem utilizada pela teologia cristã, podemos definir 'revelação' como a união da alma com Deus" (p. 75, grifo meu). A linguagem de que se servem as "doutrinas" das religiões concretas servem a Huxley para a expressão da Verdade Fundamental, aquela da Filosofia Perene - a teologia cristã faz o mesmo com a noção do Cristo Cósmico: nada de novo no front...).

10. É um excelente mito esse que Lévinas encena. Tão velho quanto o Egito, a Índia, a China milenar - Platão não inventou a teoria da Idéia a que tudo fundamentalmente se resume: apenas aconteceu de ter sido ele a ter escrito parte de nossos fundamentos ocidentais. Esse tipo de operação - de estratégia (consciente ou inconsciente não faz a menor diferença) - é a que todo teólogo/filósofo grandiloqüente, "ontológico", totalizante, de síntese, opera. Tudo tem de ser posto dentro do Todo, Uma Grande Unidade tem de subsistir sob as Miríades de Aparências Fortuitas. Platão o fez (Paulo e Agostinho são hipônimos em relação a Platão). Huxley o fez (antes dele, Madame Helena Petrovna Blavatsky - que diferença entre ela, Platão, Paulo, Agostinho, Huxley, Lévinas?), e que, agora, quero dizer, foi em 1973, mas "agora" no sentido de que é agora que o leio, Lévinas: "como se a idéia do Infinito - o Infinito em nós - revelasse uma consciência que não está suficientemente desperta? Como se a idéia do Infinito em nós fosse exigência e significação no sentido em que, na exigência, uma ordem é significada" (De Deus que vem à Idéia, p. 97). Puro Platão, não? E, para arrematar, o Platão redivino da modernidade: "A figura infinito-introduzido-em-mim - conforme Descartes contemporânea de minha criação" (p. 98). E, para sabermos que Lévinas põe toda essa longa tradição a serviço da fé que tem: "o discurso filosófico deve, portanto, poder abranger Deus - de que fala a Bíblia" (p. 86). Jimmy, Derrida estaria sendo sarcástico? Logo Derrida?

11. Ah, Jimmy, não entendo por que cargas d'água pareceu-lhe que devia eu ler Lévinas, se tudo quanto eu tenho "atacado" é justamente essa ipsissima vox, ora em Lévinas, ora em Tillich, ora em teólogos mais próximos. Fé, presunçosa fé, eventualmente, arrogante, impondo-se, com aparência - só aparência - de diálogo. Deve-me R$ 40,40. Com isso podia ter ido ver Ensaio sobre a Cegueira, de Saramago, acompanhado do melhor pedaço de minha ínfima vida.

12. Mas, já que gastei, vou arrancar a pele inteira de Lévinas. Não para dizer que esteja errado. Mas para denunciar que é mito - só mito, nada mais do que mito. E, mito por mito, o de Exu também é bem interessante...


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

2 comentários:

Elias Aguiar disse...

Relendo alguns e-mails, deparei-me
com: "Não há palavras boas senão
aquelas que, em ambiente de tirar
o chão, tiram-nos o chão. Mas
acredite-me, não há chão lá. Há
breu, tão espesso, tão interditado,
tão escondido da perspicácia, que
você olha meio com medo, e acha
que é chão. Mas é nada. Mentiram
pra nós – a vida toda" (10/04/08).

Eis, neste post, palavras boas,
em 12 tópicos (cabalístico?
proposital?)...

Abraço!
Elias Aguiar

Peroratio disse...

O bom, Elias, de ser-se nu e sincero é poder reconhecer-se, quando se é citado. Isso que citas, sou mesmo eu. Era outro dia, mas era mesmo o mesmo eu.

12 - não. Nada cabalístico.

Um abraço fraterno,

Osvaldo.

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