quinta-feira, 20 de novembro de 2008

(2008/57) Ainda Lévinas



1. Ontem foi mais um dia de leitura de Lévinas - o trem, dessa vez, não era a versão confortável e vazia da última vez, pelo contrário! Mas a viagem acabou transcorrendo muito rápida, porque me envolvi muito com a leitura e, quando vi, já era a Central do Brasil. O que tem bons significados...

2. Aquela primeira parte, "Deus e a Filofia", da "Parte II - A Idéia de Deus", terminei de lê-la, e não há novidades significativas. Tirando o excesso de frustração que recobre o post 2008/57, cujo final ficou bastante pesado - talvez excessivamente pesado -, tudo está como antes no quartel de Abrantes. Lévinas fala do "Deus" bíblico, teologia é a "intelecção do Deus bíblico", o pensamento só seria possível no acolhimento do "Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó" tomado como conceito, o Infinito está em nós, Deus é o Desejável, o Desejado, encontrado em nós, há um trauma do Infinito, irrepresentável e inassumível no "eu" (as noções de Alma, Idéia e Queda, todas, todinhas, de Platão), a Ética é mais sublime do que a Ontologia, e é a própria Ontologia do Outro em mim, Os Irmãos Karamazov, uma certa citação: "cada um de nós é culpável diante de todos, por todos e por tudo, e eu mais do que os outros" (citada outra vez, no capítulo dois dessa segunda parte), uma defesa da Ética como profética e "revelada", tudo isso é muito, muito velho, e já se falava sobre isso quando as primeiras Sequoia sempervirens, dentre as ainda vivas, germinavam, nas montanhas do norte do continente.

3. Mas o capítulo dois da Parte II (o sexto, na série), "Questões Filosóficas" é muito interessante, porque Lévinas deixa-se sabatinar por uma série de professores em uma sala da Universidade de Leyden, em março de 1975, e, asim como eu, alguns deles vão à jugular de Lévinas. Isso lhe dá ocasião para confessar-se, para revelar seus fundamentos. E ele o faz. Sem constrangimentos.

4. Foi uma leitura de parar, olhar para o nada, por entre os corpos pobres do trem, e rir sozinho - porque Lévinas confirmava, palavra por palavra, o que eu dissera de seus textos já por mim lidos nos posts anteriores. Eis algumas das confissões de Lévinas, que me deixaram feliz, não por elas em si, mas por terem me revelado que, afinal, lia-o de modo adequado.

4.1 "Minha preocupação onipresente consiste precisamente na tradução desse não-helenismo da bíblia em termos helênicos e não simplesmente em repetir as fórmulas bíblicas no seu sentido óbvio, isolado do contexto, o qual, na altura de tal texto, é toda a Bíblia" (p. 122-123). Aí está - e isso eu já havia dito: Atenas e Jerusalém. Entre Lévinas e Abraão postam-se Fílon e Paulo, e Lévinas aumenta a fila dos recepcionadores helênicos-judaicos da "tradição". Se é possível unir as duas tradições - uma cultura semita, enquanto ela é o que é, e uma cultura grega, naquilo que ela é tomada pelo que se tornou em um determinado momento "filosófico" -, tenho graves dúvidas: uma ler a outra, uma compreender a outra, sim, assim como uma transformar-se, contaminar-se, pela outra, mas dizer uma pela outra - tenho profundas suspeitas disso. Será uma, dizendo-se dizer a outra em seus próprios termos. Se for assim, Lévinas fala grego ou hebraico - quer dizer, lá no fundo de sua alma filosófica?

4.2 Questionado quanto ao método, Lévinas dá uma longa resposta, e, ao conluir, deixa claro o seguinte: "aqueles que ao longo de sua vida, fizeram metodologia escreveram muitos textos que substituem livros mais interessantes que eles poderiam ter escrito. Azar para a caminhada sob um sol sem sombra que seria a filosofia", porque "não creio que possa haver transparência possível em método nem que a filosofia seja possível como transparência" (p. 127). No entanto, Lévinas confessará que seu método é uma tentativa de aplicação da fenomenologia de Husserl, uma espécie de "análise transcendental" e de "análise intencional", ainda que "não haja redução segundo as regras exigidas por Husserl e sua fenomenologia não seja totalmente respeitada" (p. 125). Quanto a mim (e ler é medir-se a partir da medida assim anunciada), prefiro o Nietzsche de O Anticristo, que faz extremado elogio ao método e conclui pela constatação de que muitos são os seus inimigos, entre eles a preguiça e a tradição (literalmente, "os costumes"). Lévinas não tem nada de preguiçoso: é a tradição seu algoz.

4.3 Quando Lévinas fala de "Bíblia", que nenhum exegeta se engane - e um exegeta jamais se enganaria. Haroldo, talvez aqui você se sinta mais em casa do que eu, mas, honestamente, penso que depois de respirar fundo duas ou três vezes, chegará à conclusão de que, assim, põe-se tudo, absolutamente tudo a perder: "o Antigo Testamento suporta várias leituras, e é quando o conjunto da Bíblia se torna o contexto do versículo que este ressoa com todo seu sentido. É isto o comentário infindável do Antigo Testamento" (p. 129). Ouço B. S. Childs, que me dá arrepios, e ainda ouço Kessler dá-nos notícias, na ABIB, de mau augúrio sobre esse mesmo prurido em terras germânicas, porque essa posição, amigos, reconheçâmo-lo, é política - em rigorosos termos pragmáticos, política. "Bíblia", "Antigo Testamento", são conceitos/coisas, são invenções dissociadas dos seus textos constitutivos, porque erigiram-se sobre a história da recepção desses textos, por meio da política - de poder - aplicados ao último estágio dessa história. Nenhum texto, exegeticamente, deve nada a nenhum outro - salvo se ele mesmo se constrói a partir dele (como Jo 1,18 que, depois de citar Moisés como mediador da Lei, afirma que ninguém jamais viu a Deus, com o que nega o conteúdo do próprio texto da Lei). Não é com a Bíblia, nem em seu contexto, que não existe, nem naquilo que suas centenas (milhares?) de perícopes independentes afirmam, que dialogamos, quando Lévinas os cita: é com o próprio Lévinas, e sua posição ética, logo, política. Ponto. A Bíblia, aí, é apenas espelho.

4.4a Eu escrevi ao lado do parágrafo: "pena que algo tão belo se queira erigir por meio de retórica" - e, agora, o trem não sacode tanto, eu acrescentaria: "retórica de púlpito". Escrevi isso a respeito do maior momento de Lévinas até agora - sua confissão ética em face do outro (não do Outro): "é em outrem que sempre vejo a viúva e o órfão. Outrem sempre tem precedência. A isto chamei, em lingaugem grega, dissimetria da relação interpessoal, Nenhuma linha do que escrevi fica de pé sem isto. Eis o que é a vulnerabilidade. Somente um eu vulnerável pode amar seu próximo" (p. 129). Lindo, não? Não é, de certo modo, também a "alma" da Teologia da Libertação? Pena, que pena, que lástima, que tristeza, que para se dizer tal coisa, tão bela e profunda, pena que para se construir tal mundo, tal utopia, deva-se, a todo custo, torcer e retorcer a Bíblia, trazê-la para cá, fazê-la dizer isso, apagar dela o seu contrário, transformar isso em ontologia, e dizer que isso é, mesmo, o que Deus quer. Ah, isso é falso. Porque a ética é algo que se me impõe aqui e agora, mas uma ética ontológica - Kant e sua Crítica da Razão Prática - é absolutamente dispensável. E, se não o é, não aprendi nada do século XIX. Nesse sentido, a TdL leva mais vantagem, porque ela lida com quem não saberia ver em sua ação profética a mesma retórica de heteronomização (com ar de autonomização) da direita. Para ela, por melhor que seja sua inteñção de fundo (e eu comungo com os seus valores explíticos), vale, em toda a sua causticidade, o Aforisma 129 de A Gaia Ciência. Lévinas, contudo, escreve para gente culta, estudada - é mais fácil perceber a estratégia. De modo que ele a confessa muito rapidamente, porque ela se dá à luz do dia.

4.4b Eu mesmo já quase caí nessa tentação. Já tentei falar sobre o "amor", em João, numa perspectiva fundacional, já tentei justificar o "amor", a ética, numa perspectiva "ocidental" - grega, vai. Mas, no meio da empreitada, dei-me conta do ridículo a que me submetia. Aristocrático que fosse, inimigo da democracia, inimigo confessado da democracia, Nietzche, todavia, estava certo: não há fundamento algum para a moral, para a ética - é a sociedade quem deve pôr, sabendo que é ela quem põe, os fundamentos das relações. Mesmo o amor não é nada além de risco em face do outro. Não é um valor do céu. É mamífero. O vazio humano é insuperável. É maior do que a sua capacidade de inventar enchimentos de nuvens. E, no entanto, o amor é uma possibilidade - gratuita.

4.4c Ontem, Bel atendeu a um telefonema. Era um desses telefones de falso seqüestro. Do outro lado da linha, alguém chorava, dizendo "mãe, mãe", como se fora nosso filho. Bel sofreu. Mas manteve a calma, e fez-se impor, ainda que tomada por um mar de angústia e terror internos. Era golpe. Nosso menino estava e está bem. Depois, conversávamos, e ela, já sabendo a resposta, sempre, ela é Bel, mas tomada de adrenalina, perguntava-se, e a mim, como pode haver tanta maldade, tanta gente má, perversa, no mundo. E eu lhe disse que, por pior que seja a idéia, é a condição de nossa eventual bondade, porque a liberdade, a conciência, não é a liberdade para o bem, mas a liberdade para. Se não posso escolher o mal, não posso, simplesmente escolher. Morin já dissera - o budismo tem razão: desapegar-se leva ao não-sofrimento. Sim, mas também ao não-apegamento, ao não-amor, à não-alegria.

4.5 O ponto alto de Lévinas, contudo, são duas páginas (e, Jimmy, quase me fazem retirar a cobrança que lhe fiz dos R$ 40,40!), nas quais ele apresenta sua leitura de um trecho de Ser e Tempo, de um Heidegger de quem ele diz: "os senhores sabem, sempre me custa prestar homenagem a Heidegger; mas sabem também que não é por causa de sua genialidade incontestável" (p. 130 - leio aí uma referência às aproximações nazistas de Heidegger, e Lévinas é judeu!). A meu ver, o que Lévinas diz é válido - apenas - para o primeiro Heidegger, aquele muito próximo de Dilthey e de Nietzsche, mas não para o segundo, aquele de quem Gadamer se aproxima, o da Linguagem com "L" maiúsculo (Heidegger encena em sua vida os mesmos dois momentos de Kant: um, revolucionário, outro, reacionário). "O ser é o que se torna meu-próprio, e é por isso que se requer um homem ao ser. É pelo homem que o ser é 'propriamente'. - São as coisas mais profundas de Heidegger" (p. 131). Sim, sim, e é desse Heidegger que eu gosto. O problema é que tanto ele quanto Lévinas, desse ser-aí retornam, ainda que, eventualmente, nele, ao Ser - Lévinas, Infinito, Outro, Deus, Heidegger, Linguagem. É tão aterradora a solidão e tão gelado o frio que lhes custa libertar o filho que pariram? Contemplaram excessivamente de perto a face do ser-aí, e, perdidos , recuaram? Nem ainda para eles Nietzsche é contemporanizável? Quanto tempo ainda? Se o historiador de Bloch é aquele ogro da lenda, a devorar carne humana, caça, o que será esse Ser, esse Infinito, essa Linguagem, essa Tradição - esse Deus - a comer a carne, os olhos, o coração, o cérebro, a colheradas, de suas mais perspicazes criaturas?


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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