segunda-feira, 17 de novembro de 2008

(2008/50) Da apropriação indébita à traição


1. O título é pesado, mas o tema é leve. Minhas visitas ao Seminário de Cabo Frio me legaram um interlocutor, Pr. Wilson Lima. A última dele foi enviar-me passagens em que o designativo hebraico 'elohim, mesmo aplicado à divindade 'Elohim, acompanha o verbo no plural. Não há muitas, mas não são poucas, também. Digamos, um número consideravelmente significativo para que a questão seja percebida.

2. Disse-lhe que um "teólogo" cristão não tardará a ver, aí, antecipações da Trindade (se a doutrina falasse de uma Quaternidade, então, da Quaternidade). Wilson sabe disso. Achou curiosa a ocorrência - e resolvera dIvidi-la com alguém que, como ele, gosta de levantar pedras a ver que há debaixo.

3. Essa conversa deu-me ocasião para comentar com ele a respeito das interpretações que fazemos dos textos bíblicos. As palavras, as frases, as perícopes, as narrativas bíblicas devem ser lidas a partir da plataforma cultural de lançamento delas. Nenhuma palavra humana tem sentido em si mesma - são pessoas que, usando-as, atualizam sua potência, às vezes, empregando a elas sentidos disponíveis na cultura, outras, negando-lhes justamente o sentido cultural ("reinscrição transgressiva" - cf. Is 4,2-6!), outras, cunhando-lhes novos significados (neologismos).

4. Quando um autor ou autora da Bíblia Hebraica escreveu as palavras que escreveu, atualizou-as segundo seu modo cultural e situado de pensar. O que essas palavras significam, exegeticamente, tem de ser aquilo que elas significam dentro do sistema de pensamento que as atualizou, quando foram escritas. Como os historiadores não têm dificuldade de afirmar, narrativas antigas são "objetivações de consciência", e devem ser "abertas", "lidas" como parte do "sistema" que as articula - contexto histórico-social, intenção do(s) autor(es) em face do(s) destinatário(s), tradição na qual contexto, autor(es) e destinatário(s), logo, a mensagem, estão inseridos.

5. Posso fazer alegoria e midrash? Isto é, posso fazer como Mateus, ler os textos do AT sem respeitar nem um milímetro do sentido que as palavras que, agora, uso, tinham, quando foram escritas? Posso. Alegoria é isso - apropriação indébita. Midrash, também. Oséias teria um colapso se visse o que Mateus fez com seu capítulo onze.

6. Do ponto de vista da cultura em que Mateus escreve, o midrash e a alegoria são muito legítimas. Há mesmo práticas culturais que se toleram por um tempo e que apenas o futuro as classificará como equivocadas (e para e no futuro o são mesmo). Enquanto isso não acontece, usa-se e abusa-se. Mateus fez escola. Mesmo hoje, é o que mais se faz, em matéria de leitura da Bíblia - seja pela direita teológica, seja pela esquerda teológica (e é curioso como uma quer desdizer a outra, ambas, quase sempre, inventando seus sentidos - a guerra é puramente política).

7. Bem, se eu anuncio que não estou me servindo da intenção do autor - "gente, olha, não é que Oséias tenha dito isso: eu é que posso pegar as palavras dele e dar a elas outra forma, entendem?" -, a apropriação indébita desaparece. Minha honestidade intelectual, minha seriedade metodológica reconhecem que não foi "isso" que o texto antigo quis dizer, e que eu o faço dizer "isso" porque eu quero/preciso que o texto diga "isso". Aquele é um bom uso da alegoria - método literário de produzir, confessadamente, novos sentidos, que nada tinham a ver com o sentido histórico-social da passagem da qual me sirvo em minha brincadeira estético-política.

8. Mas quando faço alegoria e midrash, e digo que isso que o texto "diz" (que eu faço ele dizer) é o que fora "dito" pelo "profeta", não apenas aproprio-me indebitamente da memória do profeta, como traio meus contemporâneos, porque minto para eles. Roubo de um, minto para outros. Para mentir - preciso mentir! - roubo - preciso roubar!

9. No fundo, corrijam-me, a alegoria e o midrash se fazem "necessários", porque sempre preciso que meus leitores se submetam à autoridade "tradicional" das Escrituras. Quero que eles me dêem crédito - logo, faço a eles ser crido que o que eu digo é o que as Escrituras dizem. Roubo as Escrituras, minto para meus concidadãos, traio a História, nego a fé. Em nome da fé. A. M. D. G.

10. Resumindo, a alegoria e o midrash, quando usados à moda de Mateus, são exemplos claríssimos de política - de má política. Como a escravidão, o passado foi tolerante com essas práticas dissimuladas de produção social de sentido e poder. Hoje, parece-me que estamos mais crescidinhos. Quero crer que sabemos um pouquinho mais de ética, a ponto não apenas de perceber que não apenas Mateus não dá um bom exemplo, quanto nossa "tradição" inteira se fez por meio de apropriações indébitas e traição, roubo e mentira. Sim, sim, há algo de bom nela, na Tradição - mas, com certeza, não isso.


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

2 comentários:

Joe Black (Joevan Caitano) disse...

Tu falou sobre isso na palestra PÚLPITO E PREGAÇÃO na semana de homilética no STBSB - 2008. Eu estava lá, na última fila, do lado da porta...hehe...mas captando "tudo"...quase td.
abçs
Joe

Elias Aguiar disse...

Ah... o tema não é "leve", não.

Pode ser simples, do ponto de
vista daquele que pretende
transparência e honestidade
metodológica...

...mas há os que sentem o "peso"
do tema, contabilizando as perdas
em poder e recur$o$...

Abraço!
Elias Aguiar

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