A síndrome de vira-latas afeta todos nós. De um jeito ou de outro, cada um de nós experimenta, em algum momento, de algum jeito, em alguma área de sua existência e ação, o complexo maldito que nos foi implantado pelos administradores de nossa cultura, desde a época do Brasil colonial...
No meu caso, há uma batalha dentro de mim. Susceptível emocionalmente, também por conta de uma educação caracterizada pela aura dessa doença ("vocês não vão dar pra nada!", "é uma raça de vagabundos!" e coisa do gênero, contra o que lutar é extremamente difícil), meus sentimentos são muito facilmente atingidos por essa espécie de emoção negativa...
Todavia, por alguma razão que eu não sei explicar, talvez um excesso desejo egoísta de ser feliz, não sei, talvez um amadurecimento de um tipo dialogal-conjugal, não sei, o que eu sei é que, ao lado desse sentimento ruim de minoridade, de inferioridade planetária e cultural, pessoal, inclusive, toma-me uma consciência de que não há razão alguma para partir-se do pressuposto de que, se é estrangeiro, é melhor: em tese, vamos à luta, vamos fazer o que temos de fazer e vamos ver como as coisas terminam...
Assim, vejo-me como o campo de batalha entre duas pulsões: uma, que me berra aos ouvidos: "inferior!", outra, que me berra aos ouvidos: "você pode fazer melhor do que eles!".
Não é fácil administrar essa batalha, porque a pulsão da síndrome de inferioridade nos (me) foi inculcada na tenra infância, e ela faz parte da estrutura sináptica de nosso (meu) cérebro. Não é possível dizer às sinapses: parem! Só é possível, por meio de exercícios conscientes, receber a pulsão, racionalizá-la, sublimá-la e enfrentar a reação emocional com confiança e coragem, sabendo que se trata de um fenômeno psicológico profundo...
No passo seguinte, fazer o que tem que fazer e comparar, objetivamente, com quem faz a mesma coisa. Se fazemos realmente bem o que fazemos, a comparação revelará que, se há alguma deficiência, é estrutural, fruto de diferença de oportunidade, de insuficiência de ferramenta, de injustiças existenciais que ainda não foram superadas...
Um exemplo que dou é a exegese do texto da sarça ardente. Escrevi um artigo sobre isso. A tradução tem um problema grave. Em hebraico, o texto não diz que a sarça queimava, mas não se consumia, e Moisés se aproxima para ver por que ela não se consome. Em hebraico está escrito que a sarça queima, mas não se consome e, surpreendentemente, Moisés se aproxima para ver por que a sarça não queima. Ou seja, a segunda parte da narrativa nega a primeira.
Quando escrevi o artigo, nenhum dos comentários que li, exceto um, sequer se dava conta disso. Passava por cima, sem qualquer escrúpulo. Viram o fato? Sequer perceberam? Encontrei apenas um artigo internacional - um - em que o autor se dera conta. Todavia, o que ele fez? De forma ainda mais surpreendente do que o que está em hebraico, a saída dele foi dizer que o verbo adequadamente traduzido por queimar, foi usado, na segunda ocorrência, com o sentido de consumir! Ou seja, ele apenas homologou - indevidamente! - a leitura tradicional. Viu, mas fez que não tem importância o que ele viu...
Quando a síndrome de vira-lata está aumentando seu nível em meu córtex, quando há tanta gente gritando à nossa volta que somos inferiores, eu fecho os olhos, lembro-me de "A Sarça? Como assim 'queimava'?" e mando meus instintos tratarem de mandarem-me outro sinal, porque não somos inferiores, não...
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
Nenhum comentário:
Postar um comentário