sábado, 9 de março de 2013

(2013/221) Das duas dimensões da Bíblia Hebraica - história e narrativa


1. Se com literatura se quer apontar para um conjunto de textos que são arte em si mesmos, escritos como fim em si mesmos, para diversão, encantamento estético, fruição e gozo das papilas estéticas da retina - então direi insistentemente que não há literatura na Bíblia Hebraica.

2. Até onde posso controlar as informação, todos os textos da Bíblia Hebraica constituíam textos de intervenção social - textos para fazer com que pessoas fizessem ou deixassem de fazer coisas, pensassem ou deixassem de pensar coisas, textos conservadores ou textos revolucionários, textos de conflito, textos programaticamente engajados. Mesmo no Salmos, em Provérbios, mesmo em Eclesiastes, livro próximo-filosófico.

3. Penso que essa condição dos textos seja relevante para a discussão sobre como lê-los. 

4. Que são narrativas - de variadas constituições - é óbvio: são escritos, são textos. São narrativas, sagas, lendas, mitos, legislação, salmos, provérbios. Há uma variadíssima gama de tipos de escritos dentro da Bíblia Hebraica - todavia, todos eles estão ligados indissociavelmente à seu momento e lugar e ao propósito com que foram escritos.

5. Claro, qualquer um pode lê-los como desejar. É próprio dos textos transformarem-se em massa de modelar, barro na mão do leitor. Assim, não vou dizer que não se pode fazer deles o que se quiser.

6. Escrevo, todavia, para quem os quer entender em sentido histórico. Para esses, o caminho é árduo - porque a criatividade, nesse caso, está circunscrita à tentativa de métodos para deixá-los falar: a criatividade, aí, não é a chegada - novos sentidos para brindar à noite! - mas o caminho: métodos seguros para o passado.

7. Para quem deseja entender historicamente os textos, há que se considerar, atentamente, as duas dimensões da narrativa: ela mesma, enquanto texto escrito e a funcionalidade retórica que o escritor lhe conferia no momento da escrita. Narrativa e história.

8. Por exemplo - você pode gastar anos estudando a narrativa de Caim e Abel. Todavia, se levarmos a sério o fato de que as narrativas bíblicas são instrumentos de intervenção social, não basta permanecer nela: há que se sair dela e entrar no horizonte de produção que a trouxe à luz: o que é que se pretendeu, quando se escreveu essa narrativa?, quem é Caim, retoricamente falando?, quem é Abel?, o que significa Caim ofertar bens agrários?, o que significa Deus rejeitar bens agrários?, o que significa Abel ofertar sacrifício de sangue?, o que significa o sacrifício de Abel ser aceito?, e, para mim, a pergunta mais relevante: o que significa Caim ter matado Abel?

9. Se estamos apenas diante de narrativas estéticas, significa o que você quiser. Se, de modo mais sofisticados, mas, ainda assim, completamente fora da historicidade pertinente à retórica histórico-social que a caracterizava, nos mostrarmos interessados pela "verdade profunda" - dita junguiana - da narrativa, poderemos escolher a verdade profunda que desejarmos. Mas, eu insisto, se essa narrativa tem vínculos ideológicos, programáticos, políticos, com quem a escreveu, com sua identidade, com seu projeto - então, inapelavelmente, temos de perguntar a esse "quem" o sentido...

10. É preciso, pois, entrar num ciclo sofisticadíssimo e perigoso. É preciso, pela narrativa, reconstruir o cenário de sua redação e, por meio do cenário, compreender a narrativa. Movimento perigoso, porque você pode inventar um cenário e, inventando-o, inventar um sentido histórico...

11. Risco grave.

12. Mas incontornável.

13. Nesse caso, a interpretação histórico-social de narrativas bíblicas não pode se dar no campo da literatura, da narratologia, da semiótica - se isoladas, se arrancadas do mundo em que os textos foram produzidos. Essas disciplinas nos ajudam a controlar a narrativa, a perceber suas injunções sintáticas, sua imagética. O sentido, todavia, não está na própria narrativa, mas na relação entre o evento histórico que a engendrou, a ideologia com que o escritor se insere nesse momento histórico e o projeto que a narrativa tem em face de seus leitores...

14. Devemos, pois, perguntar o seguinte: quanto a Caim e Abel, que cenário histórico social emerge de uma narrativa em que a divindade não mais aceita ofertas agrárias, aceita apenas sacrifício animal e, em razão disso, o ofertante de cereais assassina o ofertante de animal? Há, na história de Judá ou de Israel alguma coisa semelhante a isso?

15. Penso que sim. Vejo duas outras narrativas com motivo semelhante. Primeiro, o dilúvio. Yahweh diz que o homem é mau e mata a todos - exceto Noé. Noé, então, sacrifica um animal para Yahweh. Yahweh sente o cheiro do sacrifício e, apesar de ainda considerar que o homem é mau, decide não matá-lo. Ou seja - o judeu é mau, mas, se fizer o sacrifício do animal, Yahweh aceita a morte do animal no lugar dele.

16. Outra narrativa: Deus manda Abraão matar seu filho. Na hora agá, o anjo entrega a revelação: Deus aceita que se mate um animal no lugar do filho...

17. Há um padrão aí: há uma novidade. Há a introdução cultural do sacrifício substitutivo. Uma novidade e tanto. Os camponeses nunca ouviram falar disso. Não aceitam com facilidade. Resistem. O Templo, todavia, vai ganhar a batalha e Judá se tornará uma religião de sacrifícios de animais, como é até hoje o judaísmo (cf. Karatot).

18. Voltando a Caim e Abel, talvez os camponeses tenham entrado em confronto físico com o Templo. Talvez tenham, mesmo, ferido e morto alguns sacerdotes. Talvez isso seja o significa de Caim ter matado Abel - talvez essa seja a chave. Não se trata, então, nem de Caim nem de Abel - estamos, aí, dinte de literatura mítico-literária: Caim representa o campo e sua recusa em aceitar a novidade do sacrifício substitutivo. Abel representa o sacerdócio e o novo judeu sacrificante. Que Caim tenha matado Abel talvez represente aquele momento em que camponeses enfrentaram o Templo - e, óbvio, que Caim tenha se tornado maldito apenas representa que os camponeses perderam a batalha e Deus tomou o partido sacerdotal - como sempre.

19. Tudo isso é especulativo - mas faz sentido. 

20. Se você quer ler narrativas enquanto arte, fique à vontade - mas não estará em contato com a cultura que as gerou, a história que as engendrou: qualquer leitura que você fizer, estará bem feita. O problema é lê-las como seus redatores queriam, apreender-lhes a mensagem histórico-programática: pode-se errar. Nesse caso, quanto mais sensibilidade retórica -0 análise do discurso - e conhecimento da cultura e da história judaicas, melhor.

21. Nesse sentido, se você é um mau leitor, terá dificuldade de captar a dinâmica retórica da narrativa. Tem de ser um bom leitor. Todavia, não basta, nesse caso, ser um bom leitor - tem que ter uma ótima percepção da cultura judaica, da história judaica - e empreender todo esforço para encontrar o ponto exato em que a narrativa pousa sobre elas...





OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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