sábado, 31 de março de 2012

(2012/340) Desnudar o outro - ou, dito de outro modo, ler muito atentamente

1. A maior dificuldade de alunos é ler. Não sei o que houve de lá para cá. Em minha época de estudante, aprendíamos razoavelmente bem. Estudei em escola pública a vida toda. Fiz até um semestre de MOBRAL, para reforço. E acho que aprendi a ler. 

2. Tirava notas boas em Português. Gostava. Quando terminei o curso, comprei o Cegalla - não, minto, era de meu primo. Peguei, então, o Cegalla de meu primo e o li duas vezes de cabo a rabo, fazendo os exercícios. Acho que ainda tenho a Gramática lá no Rio...

3. Tornei-me um leitor razoável.

4. Mas, então, "converti-me" à fé batista, e bateu-me a Bíblia às mãos. A leitura da Bíblia, na Igreja, é a coisa mais deseducativa que alguém pode ter em matéria de leitura. Vou repetir: poucas coisas mais deseducativas há na prática de leitura do que ler a Bíblia na Igreja.

5. Por quê? Porque, além de a Igreja não ensinar ninguém a ler (como se deve), desensina, já que a leitura que ela impõe tem que adequar-se à fé denominacional, de modo que, não importa o que o texto diga, se você é batista, tem que entender batistês, se é da Assembléia, assembleiês, se é prebiteriano, tem de ler como se o escritor fosse presbiteriano.

6. (Quase) ninguém lê - de fato - a Bíblia. Alegoriza tudo desde a letra. Lê o Antigo Testamento como se fosse um livro cristão e lê o Novo Testamento como se fosse um livro evangélico.

7. Não há curso de leitura que dê jeito. Nesse caso, ensinar o sujeito a ler é fazer dele um herege em potencial. Não há meio termo.

8. E isso se deu também comigo. Todavia, depois de um período de dois anos desaprendendo a ler, estupidificando-me na leitura alegórico-denominacional, normativa e obrigatória, fui para a "casa de profetas". É verdade que lá tem uma penca de desensinadores de leitura - teólogos, principalmente. Nietzsche já disse, e é a máxima verdade, que todo bom teólogo é mau filólogo. Isso, vi ao vivo, até a exaustão auricular...

9. Todavia, dei sorte: tinha lá um ou outro biblista - principalmente os do Antigo Testamento. Recado aos controladores das ideias teológicas, os "donos" da verdade nos seminários: querem fundamentalizar o curso?, impeçam aulas de Antigo Testamento com quem sabe ler. A crítica - a leitura analítica - do Antigo Testamento é o fio que desmonta tudo, não fica nada de pé. Não há leitura mais libertadora, meus amigos do que a leitura crítica do Antigo Testamento - e ninguém se desconstruiu tanto quanto um exegeta da Bíblia Hebraica...

10. Deparei-me, então, com meu professor de Antigo Testamento, Élcio Sant'anna, hoje, doutorando em Antropologia pela Estadual do Pará. Ele me indicou a direção. Depois, Haroldo Reimer me apresentou a uma boa loja de secos e molhados e, pronto, eu estava na estrada - definitivamente.

11. Essa fase élcio-haroldiana orientou-me à crítica. Bom leitor eu aprendera a ser mais cedo, como disse. Mas eles me recolocaram no trilho, depois de um ano de catequese e outro de sermões dominicais "modeladores" da forma e do conteúdo...

12. O mestrado e o doutorado terminaram a fase fundamental do percurso. Hoje, é lustrar o móvel, aparar arestas, aprender um ou outro detalhe, uma sintonia fina para pianos experimentados...

13. E, então, gostaria de dar um conselho: não leia nada, absolutamente nada, sem desnudar o autor. Deixe-o nu, sem sapatos, sem calças, sem cuecas, sem camisa, sem gravata. Se for mulher - e você homem -, paciência, deixe-a nua (e contenha-se!). Mas é imprescindível que você desnude seu interlocutor.

14. Porque ele quer algo com o texto dele. Não quer apenas dizer algo: quer que você faça algo. No campo dos discursos sobre os textos, fala-se de "comunicação". Fugindo da objetividade da pesquisa como o diabo foge da cruz, filósofos e linguistas esconderam-se na discursividade comunicativa. Texto são peças de comunicação - eles dizem. Para esconder seu diabo, esconderam outro pior. Temiam o primeiro, e o segundo a lhes varar os olhos com seu rabo de ponta fina...

15. Não os levo a sério. Ninguém quer comunicar nada. As pessoas que escrevem querem mover coisas, pessoas. Escrever é ação de intervenção no mundo: não é "comunicação". É ação. E o texto que está diante de meus olhos já me pega pela mão e pelo pé, já quer que eu faça coisas, diga coisas, não faça coisas, não diga coisas, pense assim, não pense assim, quer guiar-me, controlar-me, dirigir-me...

16. Não há texto que não queira. De modo que não há como encontrar textos neutros. Seu papel de leitor é identificar o "projeto" do texto que você tem diante de você - o que ele quer que seus pés e mãos façam.

17. E, se o projeto é agradável à sua própria ideologia, faça você mesmo, se desejar, o que o texto pretende que seja ele a fazer você fazer. Ou não faça. Mas é fundamental que você identifique o projeto ideológico, político, social, do texto - o que ele quer que você faça.

18. Quanto à Bíblia, então! Se a igreja é o lugar de maior desinteligência de leitura, a Bíblia é a leitura mais perigosa que se pode fazer. Todavia, como ela é a base do Ocidente, não lê-la, por ser ela um perigo, é ingênuo. É justamente porque ela é a base do Ocidente que se deve lê-la - para desnudar todos os seus autores - todos.

19. A Bíblia é uma biblioteca, com centenas de autores e textos. O modelo de 66 livros (39 + 27), caro aos protestantes, é ingênuo e conservador - logo, falso. Tomam-se os "livros" como unidades, mas, na verdade, são, em si, com raras exceções (Rute, por exemplo), bibliotecas, coleções.

20. Cada autor da Bíblia tem um projeto, quer mover você de um jeito, para cá, para lá. É preciso ler tudo isso com astúcia, cuidado, zelo, crítica. É preciso, sobretudo, ética. Os autores vão pedir que você faça coisas que, se fosse outro livro, você não faria. Mas é a Bíblia... e você faz. Pois não faça. Negue-se. Se não é livre o suficiente para fazê-lo por si só - use a própria Bíblia em sua defesa: não farei ao outro o que não quero que façam comigo.

21. Muita coisa que você faz, porque está na Bíblia, se você a ler assim, deixará de fazer.

22. Pois faça - isto é, leia a Bíblia com autonomia, e deixe de fazer coisas que ela manda você fazer, e você só faz porque é ela a mandar, mas, se fosse outro livro, você não titubearia em considerar a ordem um crime.

23. Deixe todos os autores da Bíblia nus. Verás que, quando eles se apoiam em Deus para mandar você fazer coisas que até ao diabo chocariam, é na verdade em suas próprias tripas que se apoiam, e que Deus não estava em nenhum de seus bolsos.

24. Todavia, não é apenas da Bíblia que se trata, mas da Bíblia, dos livros sobre a Bíblia, dos livros "espirituais" e, também, de todos os demais - inclusive esse autor aqui, que, nesse momento, tem um projeto em vista. Identifique-o. Não me leia sem descobrir o que eu quero.



OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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